parent nodes: Artigos e textos selecionados sobre narratologia | Coletânea geral de Cláudia Lage


A ÚLTIMA PÁGINA


Enquanto escrevia o romance Rayuela, de mais de seiscentas páginas, o escritor argentino Julio Cortázar passou por momentos difíceis. Exausto com o processo criativo que lhe exigiu uma dedicação extrema, muitas vezes só se alimentava porque sua mulher lhe forçava a comer, só dormia porque ela lhe levava para cama, só tomava banho porque ela exigia. “Cheguei num ponto que eu não sentia mais o meu corpo, nem a minha mente”, disse o escritor numa entrevista, “era apenas uma espécie de massa sensível que escrevia”. Nessas horas, Cortázar lembrava-se comovido de Marcel Proust. “Que emoção indescritível ele deve ter sentido ao escrever a última página de seu romance!”. Alcançar a última página, no caso de o autor de Em busca do tempo perdido, significa ter ultrapassado sete volumes, vencido dois mil e quatrocentos e quarenta e oito páginas e sobrevivido a treze anos sobre a escrivaninha. “Eu experimentava uma sensação de imenso cansaço ao verificar que todo esse tempo não só fora sem interrupção, vivido, pensado, segregado por mim, mas era a minha vida, era eu mesmo”, revelou Proust, em um de seus cadernos de anotação, perto de terminar a sua saga literária. Escrever Em busca de um tempo perdido tomou um tempo tão longo que a escrita tornou-se a própria vida do escritor.

“Como então terminar um livro?”, indagou uma vez a escritora americana Mary McCarthy, “se ele se torna a nossa própria vida?”. O processo diário da escrita inverte as nossas referências, disse a escritora. “No decorrer dos dias e dos meses, os personagens vão se tornando mais fortes, mais vivos do que as pessoas.” Tudo que faz parte do imaginário — do processo criativo — se torna real. O mais real. Dá para ver, tocar, cheirar, falar, responder, escutar. “Virginia Woolf não ouvia vozes? Agora entendo o porquê”, McCarthy profere, “são fantasmas sem espíritos. Fantasmas da nossa imaginação”. Por isso, provavelmente, para alguns escritores é tão difícil chegar à última página. Abandonar aquele universo que se criou. E por isso há escritores que reescrevem tanto. A reescrita nada mais é do que o desenrolar da costura que permite costurar de novo. Permite ao escritor um recomeço, eternamente, como a Penélope de Ulisses. Borges já dizia: “Publicamos apenas para não passarmos o resto da vida reescrevendo o mesmo livro”.

“Agora, livro meu, vai, vai para onde o acaso te leve”, disse uma vez o poeta Paul Verlaine, tocando numa ferida íntima de todo escritor. Há vida após o livro? Para o livro, sim, provavelmente. Seja curta ou longa, iluminada ou obscura, frívola ou intensa. Mas para o escritor… “Entre um livro e outro, estou morta”, declarou Clarice Lispector. “Ando pelas ruas sem rumo, entro e saio de lugares, numa tristeza inexplicável, num vazio imenso”, disse Caio Fernando Abreu. “Quando termino um livro, tenho o mesmo sentimento da morte,” afirmou Ernest Hemingway numa entrevista, “só que não há corpo”. Para o americano Truman Capote, o próprio livro é esse corpo, que tanto falta fez a Hemingway, mas que, apesar da sua presença e concretude ao alcance da mão, nunca poderá ser enterrado. “Terminar de escrever um livro é como pegar uma criança, levá-la ao quintal e matá-la a tiros”, Capote desabafou, numa conferência literária. A imagem, extremamente violenta, revela o desamparo do criador diante de sua criatura. “Está feito”, continuou Capote, “e por mais belo e puro que seja, como uma criança, é preciso desfazer, só assim é possível começar de novo”. O escritor americano, assim como Borges, mas de forma totalmente inversa, ressurge com o mito de Penélope. Enquanto Borges quer libertar a criação do seu criador, e o criador da criatura, para assim recomeçar a escrita, mas poupando a criatura, lançando-a ao mundo para se fazer e se perder, Capote precisava destruí-la, não deixar de sua criação rastros nem vestígios. Só assim poderia recomeçar, ser novamente criador, mas sem a lembrança de antigas criaturas, eternos fantasmas ao seu redor.

Por isso há escritores que nunca relêem seus livros, nem mesmo suportam olhá-los. “Tenho náuseas”, dizia Clarice. “Tenho medo”, confessou Virginia Woolf. “Começo a rabiscar loucamente em todo o livro”, contou Katherine Anne Porter. Realmente, uma vez, num jantar na casa de uma amiga, a escritora americana se deparou com um livro seu na estante. Apesar de saber que a amiga possuía o livro, que ela mesma o havia autografado, levou um susto imenso. Minutos depois, a amiga veio da cozinha e encontrou a escritora sentada no sofá, com o livro aberto no colo, uma caneta feroz entre os dedos, reescrevendo-o veementemente.

“A última página traz o alívio do trabalho cumprido, mas também uma grande angústia”, revela Lygia Fagundes Telles. Ao chegar na última página, o escritor fatalmente se depara com a questão mais vital da literatura. E que, por isso mesmo, talvez a tenha evitado obsessivamente durante todo o percurso, como a um espelho que evitamos olhar, com receio do que iremos ver. “Cheguei ao fim porque realmente não há mais nada a ser dito?” Provavelmente, todo escritor se questiona, após o ponto final: “Ainda há algo a dizer?”. E ainda: “Disse tudo o que queria?”. E pior: “É importante e vital tudo o que disse?”. E mais: “O que mais posso fazer?”, ele se pergunta, numa angústia interminável de recomeços. Tentativas de dizer de outro modo o que não foi possível, ou o que foi mas ainda não se sabe, só se saberá se deixarmos livre a criatura, como Borges, se não matarmos a criança, como queria Capote. Se formos Penélopes de novas linhas e novelos, sobreviventes de nós mesmos

ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
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