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Caderno de ruminações e técnica narrativa


Ao iniciar o romance Caderno de ruminações com um instigante e duvidoso “se”, o escritor Francisco J. C. Dantas mostra, de cara, o perfeito domínio da técnica narrativa, que se torna ainda mais sólida ao longo do texto, sobretudo naquilo que chamamos de interação entre a psicologia do personagem e a montagem da história: “Se não houvesse perdido a própria clínica e, dois meses adiante, não se deixasse arrebatar por Analice, a história de doutor Otávio Benildo Rocha Venturoso seria outra”. Embora, inicialmente, o texto apresente-se na aparente terceira pessoa e no pretérito perfeito, com passagens no presente do indicativo, o capítulo de abertura apresenta o monólogo interior do embriagado Dr. Otávio Benildo Rocha Venturoso, atormentado pelo fracasso profissional e pelo amor brutal da bela Analice.

Parece maluquice falar em monólogo numa narrativa em terceira pessoa. Só que não é uma terceira, mas uma falsa terceira pessoa, porque o texto esconde a primeira pessoa que, na verdade, conta a história. É uma técnica sofisticada e o “se” revela, certamente, o estado de embriaguez em que se encontra o personagem. E se assim começa o capítulo, assim também ele termina. Ao lado disso, há uma linguagem arcaica que, a princípio, atormentou a crítica brasileira. Mas não se pode haver romance em que o personagem se distancia de sua própria linguagem. Ela é arcaica para um personagem arcaico, dentro de uma técnica revolucionária. Ponto para Francisco Dantas.

A mudança do tempo verbal do pretérito perfeito para o presente do indicativo ocorre, justamente, quando se fala do hábito do Dr. Rochinha de beber à noite depois de um dia de fracassos e lamentações: “Altas horas, ainda tentara sem sucesso a ioga — mas não conseguiu relaxar. Como último recurso, atacou o infalível Old Parr em doses agressivas, que lhe provocaram um mal-estar agravado, horas depois, em prolongada indisposição que logo desaguaria na enxaqueca costumeira. (…) Afinal, veio o derradeiro cochilo, do qual ele sai às braçadas numa névoa trevosa, talvez devido ao ouvido que, apertado contra a fronha do travesseiro, lhe afogava a cabeça com zumbidos. A ressaca lhe revira as entranhas (…)”.

Destaque-se ainda que o jogo dos tempos verbais possibilita as oscilações dos personagens, próprias da embriaguez. O pretérito, pela sua própria natureza, distancia não só a narrativa, mas também a ligação entre leitor e personagem. Já o presente do indicativo aproxima, outra vez, o personagem do leitor, e deixa a narrativa mais forte, mais “nos olhos”. Aí está a função dos tempos verbais e o seu segredo, de forma que se esclarece a diferença entre narrar e mostrar. Na pele do personagem, o texto mostra as suas sensações, e não só conta. O leitor vai e vem com o personagem, até que, no final, o “se” retorna, de forma a intensificar a embriaguez do Dr. Rocha Venturoso. Nesse sentido, observamos que o autor mantém o ritmo narrativo, mas altera os andamentos, o que é outra conquista técnica.

Quanto à linguagem, o narrador oculto, que pode ser o próprio Dr. Rochinha, em terceira pessoa, possui o que já chamamos de interação. Usasse outra linguagem, Dantas estaria traindo o romance e o personagem. Daí frases como estas: “Isso com o gravame de ser um madurão celibatário, bom de ter juízo, com idade em que o calor da mocidade devia andar pacificado”, “Desde então em luta com as mesmas cavilações daí provenientes, têm lhe faltado tirocínio e sangue-frio para administrar essa situação complicada”.

O segundo capítulo começa, então, com um texto firme e decidido. Substitui o indeciso “se” por um presente do indicativo provocante — apesar de adversativo — e por outro “se”, afirmativo. (Rochinha se demora debaixo do chuveiro, mas o conforto não lhe chega para as entranhas pisadas. E, outra vez, a linguagem vem em socorro do personagem: “Numa palavra, tem acolhido esta cadeira e a escrivaninha como impávidas relíquias que testemunham os seus desgastes. Talvez estejam aí apenas porque por uma razão obscura teimam em consolá-lo de que alguma coisa dessa torta vida pode ser duradoura”.)

Mas acima de tudo está a grandeza desse personagem elogiosamente arcaico, oscilante nas suas queixas mas convencido de suas decisões, ao lado desta cadeira que não é apenas um móvel, mas testemunha viva de sua passagem pelo mundo da ficção e pela vida, com certeza. A sensação de monólogo interior em falsa terceira pessoa — portanto, em primeira — consolida-se justamente no instante em que surge a cadeira, porque é aí que ocorrem as danações psicológicas de Rochinha, este personagem que, “sendo um cidadão de vida limpa, de linha de conduta impecável, presumia-se que, de tanto andar dentro das regras, fosse, como é de praxe, coroado por um destino exitoso. Mesmo porque, já tendo muita estrada, chegou à faixa dos cinqüenta com um saldo bastante invejável”.

A partir do terceiro capítulo se desenvolve a atividade profissional de Rochinha, até começar a derrocada, seguida da paixão avassaladora por Analice. Revela-se que, apesar de turrão e silencioso, Rochinha é extremamente vaidoso e amostrado, conforme a linguagem do personagem. E, mais do que tudo, desastrado nos negócios. Planejara uma vida de grande êxito profissional, mas era desastrado. Era movido pelo impulso, mas silencioso em certo período da vida. Até conhecer completamente a desgraça, viveu momentos delicados, mesmo quando reconhecia os dramas familiares, dizendo: “o remédio para se aturar a vida é sepultar o passado”. E o passado estava sempre próximo dele, um dia depois, talvez menos. Porque tudo era sempre motivo de arrependimento, de remorso, de agonia. Daí pode-se afirmar que vivia cercado de mentiras e ilusões. De crenças. Isto é: daquilo que imaginava acreditar para desacreditar logo depois. Este incrível Rochinha carrega consigo ainda outros personagens — Adamastor, por exemplo —, que dividem a grandeza do romance.
ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
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