parent nodes: Glossário de artes e narratologia


Coletânea geral



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flaubert

Quando se fala em Flaubert, é certo que Madame Bovary será o livro imediatamente citado. Quase nunca a referência é A educação sentimental, um romance extremamente bem escrito, com duas redações distintas, e que conta a história de dois amigos, tendo por fundo os episódios da vida artístico-cultural da França, com destaque para os fatos revolucionários de 1848, em Paris.

Ao lermos esse clássico do mestre francês, a primeira impressão é de que a história completa pertence, sem dúvida, ao narrador onisciente. Mas não é bem assim. Ledo engano. Os narradores de A educação sentimental — não há um só narrador, como era e é costume na prosa de ficção — são os seus dois personagens principais. O que só é percebido pelo leitor já no final da primeira parte do romance. Uma habilidosa estratégia literária de Flaubert.

Quando o romance começa, num misto de cenário humano e cenário natural, o narrador onisciente parece oferecer uma visão tradicional da história, conduzida, porém, pela falsa terceira pessoa de Frédéric e não de um narrador onisciente. Basta verificar, mais tarde, que a voz é dele nessa longa conversa, diálogo com o amigo Charles Deslauriers. Uma rápida leitura do primeiro parágrafo mostra a riqueza das vozes:

No dia 15 de setembro de 1840, o Ville-de-Montereau, pronto a largar, soltava os seus grossos rolos de fumo junto do cais Saint-Bernard. Gente chegava esbaforida; barricas, cordas, cestos de roupa dificultavam a circulação; os marujos não respondiam a ninguém; as pessoas atropelavam-se; entre dois cilindros eram içadas encomendas, e a vozeria perdia-se no silvo do vapor das máquinas que, escapando por entre as chapas de zinco, envolvia a cena numa nuvem esbranquiçada, enquanto a sineta, à proa, tocava sem parar.

Então, o texto começa com duas vozes, porque a impressão inicial é a de que o narrador onisciente está revelando o cenário duplamente humano e natural. O primeiro, com a participação de muita gente, marinheiros e tripulantes, mas sem os personagens centrais; o cenário natural, constituído por barricas, cordas, cestos de roupa, chapas de zinco, o próprio navio, mas sabe-se depois que é um cenário revelado a Deslauriers. Portanto, é uma primeira pessoa. Mas como está escrito na terceira, é a falsa terceira; que se constitui numa primeira pessoa com técnica de terceira.

Percebam que o narrador fala sempre à distância, mas, na verdade, ele está ali e por isso mesmo conta.



Durante a história, o narrador onisciente vai se descolando da falsa primeira pessoa de Frédéric e ocupando a falsa primeira pessoa com Charles Deslauriers, como acontece, por exemplo, no parágrafo seguinte:

O Capitão, que explorava agora um bilhar em Villenauxe, deitara fogo pelos olhos quando o filho lhe exigira a prestação de contas da tutela, e cortara-lhe até os subsídios. Mas, como pretendia concorrer mais tarde a uma cadeira de professor na Escola, e não tinha dinheiro, Deslauriers aceitara, em Troyes, um lugar de escrevente de um procurador. À força de privações, economizaria quatro mil francos; e, mesmo que não viesse a receber a herança materna, sempre teria meios para trabalhar livremente, durante três anos, enquanto não obtivesse uma posição. Tinham assim que por de parte o velho projeto de viverem juntos na capital, pelo menos nos tempos mais próximos.

Frédéric baixou a cabeça. Era o primeiro dos seus sonhos que caía por terra.

— Consola-te — disse o filho do capitão —, a vida é longa e nós somos jovens. Hei de ter contigo! Não penses mais nisso!

1) O narrador onisciente, nesse caso, não é tão onisciente assim: ele segue o ponto de vista da personagem e harmoniza o texto. Vejam bem, harmoniza o texto segundo a personagem; e não conduz o texto sozinho.

2) Aqui as três vozes se unem através da terceira pessoa. Aquele — Flaubert — que criou o discurso indireto livre, agora apresenta as muitas vozes narrativas superpostas, sem que nenhuma delas tenha autonomia. O que lembra o “nós” na abertura de Madame Bovary, tão discutido pelos teóricos.

O que importa, sobretudo, é discutir o nível de criação em Flaubert, que deu início a toda a revolução da prosa de ficção já em 1850. Por isso declarou que queria escrever um romance sobre nada. Ou seja, um romance sem conteúdo, apenas com os elementos internos da narrativa. Nada significava, nada que fosse estranho à narrativa. Nem filosofia, nem sociologia, nem história, embora fosse tão rigoroso que a história nos seus romances vinha com informações seguras e científicas, sendo A educação sentimental um deles.

Ao tirar a autonomia do narrador onisciente, Flaubert reforçou o poder do personagem, concedendo-lhe voz e olhar narrativos. Ou seja, o texto chega ao leitor através do que o personagem vê e como vê, define o caráter e o comportamento, o que, evidentemente, enriquece a narração. O narrador tradicional se ausenta e deixa que os personagens narrem. O narrador tradicional onisciente tem, então, uma nova tarefa: a de harmonizar e organizar o texto, o que os cineastas chamam de montagem. É nesse sentido, por exemplo, que a montagem se apresenta superior à direção.

É assim que o segundo capítulo de A educação sentimental tem o comando de Deslauriers, cujo olhar chega ao leitor dentro daquele conceito dos múltiplos narradores: Deslauriers, narrador onisciente e falsa terceira pessoa. Veremos, neste sentido, como é montado o princípio do segundo capítulo da primeira parte de A educação sentimental:

O pai de Charles Deslauriers, antigo capitão do exército, que pedira demissão em 1818, voltara a Nogent para se casar, e comprara, com o dote, um cartório de meirinho, que mal dava para viver. Amargurado com antigas injustiças, sofrendo ainda os efeitos de velhos ferimentos e sempre saudoso do Imperador, vingava-se nos seus próximos da cólera que o corroia. Poucas crianças tinham sido mais espancadas do que seu filho. O pequeno não cedia, apesar das surras. A mãe, quando tentava de permeio, apanhava também. Finalmente, o pai o pôs no seu cartório e mantinha-o o dia inteiro sobre a escrivaninha, copiando processos, o que lhe deixou um ombro visivelmente mais forte do que o outro.

Quando se analisa a narrativa de Deslauriers comparando com a de Frédéric diante de outros personagens, compreende-se a mudança de caracteres, o que, naturalmente, enriquece a narrativa, sobretudo para quem acredita que lê um narrador onisciente:

(…) viu um senhor que dirigia galanteios a uma camponesa, brincando com a cruz de ouro que ela trazia ao peito. Era um sujeito forte, de uns quarenta anos, cabelos crespos. O tronco robusto enchia o jaquetão de veludo preto, na camisa de cambraia brilhavam duas esmeraldas, e as calças largas caíam sobre estranhas botas vermelhas, em couro da Rússia, e alçadas por desenhos azuis.

Esses dois perfis físico-psicológicos determinam o caráter de Frédéric e de Charles sob a organização ou harmonização do narrador onisciente. No primeiro caso, Charles vê o pai com um ranço de raiva e vingança; Frédéric, ao contrário, mostra uma visão meio que romântica do folgazão Sr. Arnoux. De forma que aí já é possível definir o caráter romântico de um e o caráter pragmático do outro.

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NÃO SE ACANHE: FICÇÃO É LUGAR PARA CONVERSA

Em literatura, estética e conteúdo caminham juntos

É natural que o bom leitor, ou leitor sistemático, queira ser escritor. Nada mais normal. No entanto, quem quer escrever precisa aprender primeiro a pensar. Precisa definir o que quer com a obra. Esquecer toda vaidade. Será julgado pela crítica sempre de acordo com os resultados estéticos, e o resultado estético depende de sua maneira de ver o mundo. Não existe forma/estética sem conteúdo, ponto de vista ou visão do mundo. Tudo isso responde a algumas simples perguntas: O que é que vou escrever? Como escrever sem saber o que vou dizer? Eu só sei o que vou dizer se tiver um ponto de vista. Isso não significa que você vai escrever discursos ideológicos, políticos, sermões religiosos, teses econômicas ou coisas parecidas. Aliás, tudo isso será transformado em forma. Quem, por fim, realiza a sua obra é a técnica — os elementos internos da obra, que você vai escolher ou definir.

Mas lembre-se: seja qual for o seu ponto de vista, é preciso começar uma obra ficcional — romance, conto ou novela — sempre com uma cena em ângulo aberto, o que transformará sua idéia em técnica. A cena significa movimento, o que, em geral, provoca o interesse do leitor. Lembre-se, por exemplo, da cena de abertura de Madame Bovary. Quando o romance começa, os alunos estão sentados, sonolentos, abrindo a boca, silenciosos. Aí entra o tutor conduzindo uma carteira e, ao lado, um rapaz, que chama a atenção até pelo boné exótico. O professor decide perguntar seu nome e ele, supertímido, solta um grunhido que nada quer dizer: “Charlesbovarrrrrrrrrrrrry”, e repete: “Charlesbovarrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrry”. O professor pede então que ele se levante. Na verdade, ele se levanta, e o chapéu exótico, ridículo, cai no chão e é chutado pelos colegas. Depois de todo esse embaraço volta a se sentar.

Neste momento, Flaubert apresenta o personagem, mostra como ele se comporta e deixa claro que tipo de personagem tratará no transcorrer do romance. Ou seja, é Charles Bovary, o futuro marido de Emma Bovary. E mostrará, ao invés de dizer, que se trata de um homem fraco, sem reações, que se deixa levar pelos outros. Basta pensar nisso para entender a diferença entre técnica e conteúdo.

Na época de Madame Bovary era comum se escrever assim: “Na cidade de Ruen vivia um médico fraco e trapalhão, tímido e incompetente chamado Charles Bovary. Ele estudou na escola X, onde era motivo de brincadeiras. Foi criado somente pela mãe, porque o pai morreu cedo”.

O leitor perceberá, mais tarde, que o primeiro encontro dele com Emma se dá em meio a uma pequena confusão — que quase repete a primeira apresentação, mas na qual se estabelece a diferença de caracteres a que Flaubert chamou de “personagens em oposição”. Ao contrário de Charles, Emma é apresentada como alguém capaz de tomar iniciativas, pronta para estar sempre à frente. É nesse sentido que os romances de Flaubert provocam renovações.

A partir desses exemplos você pode criar seus próprios caminhos, sem a necessidade de imitar. Isso tudo não deve significar um caminho único; tente variações que você vai estabelecer seu projeto de criação.

Nunca esqueça que Aristóteles viu no personagem a metáfora em ação. Você criará até se decidir pelo melhor, observando, ainda, que uma página deve ter de quatro a cinco parágrafos de cinco linhas, para deixar o leitor mais à vontade; uma página com um só ou dois parágrafos de 10 linhas cada pode causar ansiedade no leitor. Desde que não seja por motivo técnico.

Quanto ao diálogo, optará pelo diálogo interno ou até pelo discurso indireto livre. Se se tratar de uma narrativa aberta, observe que o diálogo tradicional, marcado por um travessão de acordo com a fala ou com mudanças de fala, será mais aconselhável até pela distribuição das palavras na página, com espaço aberto entre as falas.

O que é um diálogo interno? É quando o autor não usa travessões, nem aspas, nem verbos dicendi. Este tipo de diálogo aparece dentro da narrativa, e deve ser usado, por exemplo, no caso dos textos intimistas.

Você estava lá? Não devia ter ido, não devia ter saído. Não podia ir embora. A surpresa ficou na boca. Assim, suspensa. Toda surpresa é suspensa? Nem devia haver uma surpresa. O olho aceso ali, espiando. Coisa incrível a surpresa. E os olhos mirando, mirando muito bem. (Trecho do meu livro Seria uma sombria noite secreta).

Qualquer leitor mediano percebe que existe aí um diálogo. Basta verificar o ritmo. E o ritmo é fundamental em qualquer narrativa, sobretudo por causa das perguntas e das respostas. Aí não há a poluição das aspas nem os espaços abertos por causa dos travessões. A narrativa continua íntegra, íntima, interior. Por esta razão é que funciona melhor numa narrativa intimista.

No texto aberto, solto, para narrativas sociais, políticas, históricas, documentais, jornalísticas, como já se disse, é aconselhável o diálogo aberto:

— Você estava lá?

— Não devia ter ido, não devia ter saído. Não podia ir embora.

— A surpresa ficou na boca. Assim, suspensa. Toda surpresa é suspensa?

— Nem devia haver uma surpresa.

— O olho aceso ali, espiando.

— Coisa incrível, a surpresa.

E os olhos mirando, mirando muito bem. (Trecho do meu romance Seria uma sombria noite secreta)

E as aspas? Como ficam as aspas nesta história?

É preciso ressaltar, todavia, que o escritor, desde o princípio, deve entregar seu ponto de vista a um narrador em terceira pessoa, em primeira pessoa, ou na falsa primeira ou falsa terceira pessoa. O autor não deve entrar na história. De forma alguma. Mesmo se for um romance, uma novela ou um conto autobiográfico, o autor deve usar sempre a simulação. Escolhe um personagem e faz dele seu alter ego. E o que é falsa primeira ou falsa terceira pessoa? A falsa primeira pessoa, por exemplo, é uma técnica em que a narrativa é escrita na primeira pessoa, mas com movimentos de terceira. Lembrando, ainda, que a primeira pessoa é uma narrativa em close, quando a narrativa está centrada no personagem central, que conta, que explica, que expõe. Na terceira pessoa, a narrativa está sempre aberta, vista de muitos ângulos, de muitas maneiras, não se fecha em si mesma.

É preciso ressaltar, ainda, que esta não é uma regra. Nem muito menos infalível. O estudioso deve procurar outras variantes e seguir aquela que lhe pareça mais correta. É claro que os caminhos são muitos, inclusive no uso dos cenários nem sempre bem recomendados. A liberdade é o caminho da criação. As técnicas servem para indicar, iluminar os caminhos criadores. Mas sem servir de amarras fortes e definitivas. Cada escritor deve saber o que fazer na hora certa, no momento adequado, sem jamais perder a própria identidade. Nunca ceda ao desejo de criar sozinho. Conheça as cenas, os cenários, os diálogos e use-os conforme a sua necessidade sem renunciar à sua vontade, determinação e liberdade.

O MISTÉRIO RONDA MACHADO DE ASSIS"Machado tinha o dom do mistério, mas tratava-o com consciência técnica."

É possível que Machado tenha tido uma vida monótona e chata, não se discute. Mas talvez seja razoável dizer que teve uma vida discreta. Há todavia pelo menos um triângulo amoroso envolvendo um outro escritor famoso. Carlos Heitor Cony, por exemplo, conta, em longo artigo, que a mulher de José de Alencar teve um filho de Machado de Assis. Chamava-se Mário de Alencar e pertenceu à Academia Brasileira de Letras. Coisa de pai para filho.

Machado de Assis soube usar, e muito bem, o dom do mistério, que sempre rondou sua obra, desde Helena, por exemplo. Neste romance, as relações entre a protagonista e o irmão se mantêm misteriosas até as páginas finais. Mais tarde, escreveria Missa do Galo, que veio a se constituir num conto antológico, sem esquecer, é claro, o discutido e polêmico Dom Casmurro, entre outros escritos.

Sabe-se, em princípio, que ele escrevia em jornais para moças. O que o obrigava, no século 19, a usar a sutileza e a elegância, além do mistério — essas as principais características formadoras do caráter do escritor. Até que ele percebeu que faltavam momentos significativos no seu trabalho, achando que precisava melhorar muito. Veio a crise dos quarenta anos. Mas que crise é essa? Dizem os seus biógrafos que Machado tinha constantes crises de tristeza e melancolia — que hoje chamamos de depressão —, sofria da vista, e queria mais consistência na obra. Foi Carolina quem o ajudou. E daí saiu um novo Machado, mais técnico, aproveitando os seus melhores dons. Feito o dom do mistério — que Marco Lucchesi chama de o dom do crime, em livro recente publicado pela Record.

Passou a ler os ingleses com mais insistência. Dom Casmurro, por exemplo, deu-lhe o completo amadurecimento. É o romance, por assim dizer, digressivo. A ponto de usar um narrador — conforme afirma Fernando Sabino — com função de digressão. Sabino identifica no romance pelo menos dois narradores: Bentinho, narrador oculto, e Dom Casmurro, narrador digressivo. Por isso mesmo, a narrativa torna-se cada vez mais misteriosa.

Além disso, usou a estratégia do Otelo, de Shakespeare, invertendo a posição dos personagens. Bentinho, que deveria ser Otelo, para a estrutura interna da obra, passa a ser Iago, para enganar e seduzir o leitor. Não permite que Capitu se defenda, não joga luzes sobre o comportamento dela através de outros personagens. E assim ela se transforma em personagem de criação indireta, ou seja, personagem que só pertence a Bentinho — fora dele não existe. Como ela, nenhum outro personagem pode defendê-la, o mistério se aprofunda. O leitor torna-se vítima de Bentinho/Iago e não de Bentinho/Otelo como é de se esperar. É preciso lembrar ainda que o nome de Bentinho é Bento Santiago. Machado coloca-se na posição de estrategista e não de narrador onisciente, avançando muito na vanguarda do romance ainda no século 19.

Perceba-se, dessa maneira, que Machado tinha o dom do mistério, mas tratava-o com consciência técnica. Nada espontâneo, intuitivo, mágico. Sabia como tratar cada coisa e conforme a necessidade. Para isso, estudou muito e contou com a ajuda de Carolina que, entre outras coisas, revisava os seus textos.

Para quem viveu entre tantas mulheres, a maioria ficcionais, o escritor não precisava de muito. Não é fácil conviver com Capitu e Conceição — personagem de Missa do galo — dormindo e acordando com seus mistérios e sinuosidades.

Marco Lucchesi abre O dom do crime com uma digressão que aborda, justamente, a saúde do Bruxo do Cosme Velho ou do personagem central:

O doutor Schmidt de Vasconcelos sugeriu-me que escrevesse um livro de memórias. Seria uma forma de não deixar em branco o meu passado, além do benefício de espantar os males da velhice. Não todos, que são muitos, alguma parte, talvez, algum resíduo. Decidi seguir o seu conselho, não sem temores e incertezas, diante de um passado cujas imagens se revelam confusas e imperfeitas, como se fosse um mosaico inacabado, miragem do que fui ou deixei de ser.

Procuro abrigo à sombra das estantes. Cheias de livros e remédios, filosóficos e alopáticos. Meu pobre estômago em pedaços, os rins alquebrados, os olhos míopes e astigmáticos. Sinto uma forte atração pela homeopatia, argumento de peso para me libertar do alto custo dos venenos ministrados pelo doutor Schmidt.

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A sofisticada técnica narrativa de escrever em terceira pessoa com foco na primeira

Falsa? Uma pessoa falsa é gente perigosa, perigosa e traiçoeira. Mas não é dessa pessoa que eu quero falar, embora a literatura esteja cheia de personagens assim. A começar por Dom Casmurro, de Machado de Assis. Na verdade, estou falando de uma técnica narrativa sofisticada, embora possa ser lida com facilidade. Ou seja, o texto é escrito em terceira pessoa com foco na primeira. Um exemplo que aparece em Flaubert, no romance Educação sentimental:

“Teria que continuar morando num quarto andar, ter como criado o porteiro, e aparecer com umas pobres luvas pretas desbotadas, um chapéu ensebado, a mesma sobrecasaca durante todo o ano. Não! Não! Nunca! Contudo, a existência sem ela era insuportável. Havia muita gente que vivia bem, mesmo não tendo fortuna, por exemplo Deslauriers; — e achou-se covarde por dar tamanha importância a coisas insignificantes. Talvez a miséria lhe centuplicasse os dons. Exaltou-se, pensando nos grandes homens que trabalhavam em mansardas”.

Basta observar bem o texto para verificar que as palavras estão de tal forma juntas às do personagem que parece não haver um narrador autônomo. A terceira pessoa se confunde com a primeira que é quase impossível separá-las, com exceção do pretérito perfeito que vai aparecendo no fim do parágrafo: “achou-se” e “exaltou-se”. Aí há, com certeza, um distanciamento proposital para dar a impressão de que é a terceira pessoa. Isso acontece muito na obra de Flaubert.

Mas quando e por que usar a falsa terceira pessoa — posteriormente falaremos na falsa primeira pessoa. Simples. Na narrativa convencional, quase sempre — ou sempre — as peripécias são trabalhadas de forma a provocar o leitor apaixonado pelo enredo. Na obra mais sofisticada, o narrador recorre à terceira pessoa, de forma que disfarça a pessoa gramatical e é aí que vai desenvolvendo a trama. O leitor está sempre disposto a aceitar o que lhe é apresentado, o que está escrito, quase sempre apenas lê. E lê e lê. E aquilo que parecia uma informação única do narrador, com a impressão de todo-poderoso e onisciente, embora inominado, é na verdade mistério ou segredo dominado pelo personagem. Ele diz, ela afirma, ele revela, prepara o leitor, que nem percebe. Às vezes passa todo o romance sem perceber.

Um pouco mais à frente, o leitor vai encontrar um diálogo com as vozes claras de Frédéric e a Senhora Moreau, embora pareça ainda mais uma vez a narrativa. Ou para alguém mais esperto, um diálogo narrativo na terceira pessoa. Observem:

“À noite, declarou à mãe que ia regressar a Paris; a Senhora Moreau ficou surpreendia e indignada. Era uma loucura, um absurdo. Era melhor seguir os conselhos que lhe dera, isto é, ficar junto dela, num cartório. Frédéric encolheu os ombros: ‘Que idéia’, considerando aquela proposta um absurdo”.

Talvez seja mais fácil por causa da marcação ou dos verbos dicendi: “declarou”, ”era” e “encolheu”, por exemplo. O diálogo aparece mais vivo. Mais visível, até. Mas explica melhor a questão da falsa terceira pessoa com muita clareza: os personagens estão falando, conversando, e só num momento uma palavra aparece entre aspas: “Que idéia!”. Mesmo assim é uma palavra que possivelmente não foi dita. O verbo que vem depois — “considerou” — não parece muito claro, não mostra a intenção verdadeira do personagem.

Essa técnica vem se juntar a outra que mostra o estado de espírito do personagem: o cenário humano. A princípio dá a entender que o cenário-começo de Educação sentimental é narrado por um narrador tradicional, inominado e onisciente. Não é. A narrativa é do próprio Frédéric, que, por sinal, não aparece ali:

“No dia 15 de setembro de 1840, o Ville-de-Montreou, pronto a largar, soltava os seus grossos rolos de fumo junto do Cais Saint-Bernard. Gente chegava esbaforida; barricas, cordas, cestos de roupas dificultavam a circulação; os marujos não respondiam a ninguém; as pessoas atropelavam-se; entre os dois cilindros eram içadas encomendas, e a vozeria perdia-se no silvo do vapor das máquinas que, escapando por entre as chapas de zinco, envolvia a cena numa nuvem esbranquiçada, enquanto a sineta, à proa, tocava sem parar”.

Dessa forma, podemos verificar que o cenário humano é descrito em falsa terceira pessoa pelo personagem, movido pelas suas emoções e preparando a ambientação onde transcorrerão os primeiros movimentos que conduzirão o romance. Aí surge o amor de Frédéric pela Senhora Arnoux no episódio do xale e os personagens mais importante são apresentados. É curioso registrar, ainda, que Flaubert escolheu, justamente, um navio de passageiros para criar as condições emocionais da história.

Exercício: Escrever um texto na primeira pessoa e depois transformá-lo na falsa terceira pessoa, mostrando o estado de espírito de um personagem.

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SEM PERSONAGEM, A DIGRESSÃO SE DIVERTE

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O romance contemporâneo tem sempre uma dúvida: como começar? Em geral, aconselha-se sempre uma abertura com cena rápida para envolver o leitor. E daí em diante cena sobre cena, cena sobre cena, cena sobre cena, quase sem repouso. Esse é chamado o bom começo de uma história, de forma a deixá-lo quase atordoado, sem outra opção senão parar tudo, sentar-se e ficar ali até o fim do dia. Ou da noite quem sabe.

Isso quer dizer: ação mais ação mais ação. Até porque não se deve esquecer a fórmula razoável da cena: personagem mais ação mais seqüência, sugerida, ainda que, remotamente, por Aristóteles no livro famoso e definitivo: A poética. E quando a cena vem marcada de algum mistério, aí é o máximo. É o que dizem, não é? Leitor que se preze não quer saber de cenários, digressões, comentários, mesmo quando são seduzidos por eles, e nem sabem.

Exemplo marcante de cena sobre cena está no começo do conto As irmãs, de Joyce, por exemplo, com todo o envolvimento misterioso e rápido. Prestem a atenção:

Desta vez não havia esperança para ele: fora o terceiro ataque. Noite após noite, ao passar diante da casa (era tempo de férias), eu observava o retângulo iluminado da janela e, todas as noites, encontrava-o com a mesma luz pálida e uniforme. Se estivesse morto, pensava, eu veria o reflexo das velas nas cortinas escuras, pois sabia que duas velas devem ser colocadas à cabeceira de um defunto. Dissera-me várias vezes “não ficarei muito tempo neste mundo” e eu julgara vãs suas palavras. Sabia agora que eram verdadeiras.

É claro que estamos falando de Joyce, o genial, mas a rapidez das cenas — somadas ao mistério — não deixa dúvida de que esse é um começo que provoca o leitor e leva-a um longo duelo com o texto pela noite adentro ou, quem sabe, pelo dia adentro, com sol ou com chuva. E é claro também que uma ação provoca, aparentemente, mais entusiasmo do que um cenário — já ouvi dizer que os cenários estão mortos ou desaparecidos, puro engano, ledo engano — ou do que uma digressão — em muitos casos nem é bom falar em digressão.

Bem, pode ser — e sempre coloco a dúvida —, pode ser que seja assim, afinal o homem contemporâneo não tem tempo a perder. Quem acredita nisso colocaria em dúvida a qualidade, por exemplo, do primeiro capítulo de Dom Casmurro, o fabuloso romance de Machado de Assis. Porque se trata, na verdade, de uma digressão — digressão, aliás, que se estenderá por todo o livro — com aparência de cena de ângulo fechado — quando os personagens estão isolados e quando não se pode ver senão eles — na abordagem do poeta inominado ao personagem — Bentinho ou Casmurro — durante uma breve viagem de trem. Finge, o narrador finge. Mas ali não há apenas cena sobre cena e apenas uma digressão para que o narrador justifique o título do livro. Não adianta esperar a continuidade da ação: ela não virá. Além do mais, Machado de Assis adorava cenas de sono e vigília, que se repetirão em muitas das suas obras.

O que ocorre é que os narradores — autorizados pelos autores — costumam dissimular e é isso que os torna grandes. Narrar é o não-narrar. Sempre assim. Dizer é o não-dizer. Contar é o não-contar. Por isso, os leitores são seduzidos com tanta eficiência. Acreditam numa coisa e está acontecendo outra. Tudo isso, no entanto, é para demonstrar como o primeiro parágrafo de A educação sentimental, de Flaubert, é tão eficiente, mesmo parecendo um cenário humano quando na verdade é uma digressão. E os leitores nem gostam de digressão, não é? Ali, Flaubert consegue fazer uma digressão com ares de cenário humano, na expectativa de uma ação: afinal, o navio está prestes a sair e as pessoas estão desaparecidas? Desaparecidas, como? Tudo porque o narrador esconde os personagens mesmo com eles bem presentes. Frédéric está no leme — logo no leme —e ninguém ver. Frédéric o protagonista do romance. Nem aparecem Jacques Arnoux nem a Senhora Arnoux, por quem Frédéric arderá de paixão. Uma louca paixão de adolescente. Será que tem paixão de adolescente que não seja louca? Pudera.

Como isso acontece? Percebam:

No dia 15 de setembro de 1840, o Ville-de-Montereau, pronto a largar, soltava os seus grossos rolos de fumo junto do cais Saint-Bernard. Gente chegava esbaforida; barricas, cordas, cestos de roupa dificultavam a circulação; os marujos não respondiam a ninguém; as pessoas atropelavam-se; entre os dois cilindros eram içadas encomendas, e a vozeria perdia-se no silvo do vapor das máquinas que, escapando por entre as chapas de zinco, envolvia a cena numa nuvem esbranquiçada, enquanto a sineta , à proa, tocava sem parar.

Justamente isto: aí não há cena — apesar da citação do narrador — porque não há personagem importante para provocar a seqüência e a ação, e é cenário humano porque há pessoas se movendo mas sem objetividade narrativa. E como seria uma digressão? Porque o narrador finge apresentar um movimento objetivo quando é subjetivo: não tem efeito algum sobre a história, embora a história transcorra no navio. De propósito, ele retirou Frédéric que está no leme, mas não pode aparecer agora. Deve estar escondido para surpreender o leitor um pouco adiante. Não é assim?

É técnica pura. Frédéric, que deveria estar no cenário para transformá-lo em cena, está no leme, logo no leme, e o narrador esconde:

Um jovem de dezoito anos, de cabelos compridos, e que segurava um álbum debaixo do braço, conservava-se imóvel junto do leme.

Ou seja, não é verdade que o romance precisa somente — em muitos casos exclusivamente — de uma cena sobre cena na abertura do livro. O que é preciso mesmo é a sedução do narrador para atrair o leitor tanto em Machado de Assis quanto em Flaubert.

Exercício? Escreva uma cena, um texto de cenas sobre cenas, e depois retire os personagens, de forma que a narrativa se transforme em digressão. Para evitar problemas, use o artifício do cenário humano ou natural. É só um exercício; não precisa se preocupar.

Os mínimos recursos internos tornam a literatura mais rica

http://rascunho.gazetadopovo.com.br/ficcao-de-qualidade-danca-e-canta/

Talvez o fato de ser músico, de conhecer a intimidade de uma partitura, os mistérios de um instrumento, tenha levado James Joyce a se preocupar desde muito cedo com o ritmo e o andamento de uma obra de ficção. Por exemplo, Um retrato do artista quando jovem, escrito ainda sob a marca da juventude, ou da jovialidade, apresenta uma incrível variedade de elementos musicais, a começar mesmo pelo título. Sei até que falar de Joyce nestes tempos de literatura consumista, parece uma heresia. Uma barbaridade. Creio, porém, ser necessário. Já não digo que as pessoas pratiquem, mas, pelo menos, estudam. Sim, porque literatura — e a arte em geral — precisa de consciência clara e objetiva.

Sempre repito em aulas e palestras, artigos e cursos, que a ficção aparentemente, e só aparentemente, é a mais pobre manifestação artística. É claro, nos recursos. Mas só aparentemente. Porque o cinema, por exemplo, conta com todos os recursos possíveis e impossíveis — som, imagem, fala, movimento, cores, é a um tempo teatro, artes plásticas, literatura, e mais alguma coisa que se queira. Assim também é a própria música; o teatro também. E outras, e outras, e outras manifestações artísticas. Na aparência, e só na aparência, a ficção depende apenas das palavras e dos sinais gráficos. Para uns, apenas das palavras; e para outros nem disso. Por que renunciar aos nossos recursos, se temos ainda um imenso campo de investigação?

Por isso, tenho defendido que a literatura se faz com simplicidade e sofisticação. Ou seja, deve chegar aos olhos do leitor com a simplicidade de um copo d’água, mas internamente está cheia de elementos técnicos, de recursos sofisticados, de elaboração cuidadosa. Assim é possível fisgar o leitor, e sempre o leitor, sem se tornar vanguardista nem experimental. Basta verificar, por exemplo, para começo de conversa, que o título do livro de Joyce é um achado sofisticado, mas belo e fácil. Na tradução clássica — pode ser chamada de clássica? Ou é apenas uma frase de efeito? — o título é Retrato do artista do quando jovem (Editora Abril, Rio de Janeiro, 1971). Sim, a tradução clássica foi feita — ou é feita? — por José Geraldo Vieira. Pois bem, em inglês há um “A” antecedendo a palavra “retrato”. Isso quer dizer: “Um retrato”. Não se pode simplesmente tirar o indefinido porque ele sugere uma oscilação, um movimento, uma inquietação. Não há o “retrato do artista”, mas “um retrato”, que indica a própria dúvida da juventude. Talvez pudesse escrever “retrato de um artista quando jovem”. Talvez. Correria o risco de oscilar com o artista e não com o retrato, no sentido mais amplo da expressão. Com o risco ainda maior de não ser Joyce. Pode parecer um detalhe, nem tanto. Mais uma vez: é preciso recorrer aos recursos ficcionais e não escrever de qualquer jeito, porque de qualquer jeito pode. E de qualquer jeito até pode. Afinal, papel aceita tudo.

No entanto, usando esses recursos tão simples, o escritor começa por trabalhar o inconsciente do leitor, que também agora já não é mais o mesmo. Pode até parecer detalhe, bobagem. Concordo plenamente. Mas não é assim. O enredo literário, por exemplo, pode se tornar ainda muito mais rico do que o enredo tradicional e emocional, porque envolve o leitor sem que ele perceba. Quero ser muito claro e direto: não faço censura a ninguém, não ofendo o escritor mais tradicional, ele também tem suas razões decisivas. Quero apenas abrir espaço para o debate, para a análise, para a reflexão. E só. Cada um com suas determinações. É só o que penso. E assim pretendo questionar os caminhos da literatura narrativa, não é mesmo?

Quanto a esses detalhes ou recursos íntimos da ficção, a esses mínimos elementos, tão mínimos que parecem sumir, chamo a atenção para uma aliteração recusada por José Geraldo Vieira. Preciso ressaltar, ainda, que tenho o maior respeito pelo trabalho dele, foi essa tradução que me fez admirar Joyce. Mesmo assim, a tradução é, por assim dizer, conservadora. E por isso rejeita o que o irlandês tem de mais precioso: as aliterações, as assonâncias, as elipses, os cortes, o ritmo e o andamento. Afinal, ficção também dança e canta, basta o narrador deixar. Agora o exemplo de uma aliteração desprezada por José Geraldo Vieira: “Seria uma sombria noite secreta”. A frase pede esse som, o som de um sono chegando, de um momento de oscilação mental, entre o sono e a vigília. O tradutor conhece outro caminho: “Ia ser uma noite sinistra e misteriosa”. Pode? Pode. O tradutor tem o comando do texto. Mas não deve. Tanto é verdade que, em seguida, vem uma cena revolucionária toda escrita no futuro do pretérito, nosso condicional: “seria”, “andaria”, “faria”. Como assim? O leitor pode não perceber. Acontece que o narrador usa o tempo verbal para sugerir essa variação mental feito a história tivesse de acontecer e, no entanto, já estava acontecendo. Ou teria acontecido. Não é uma maravilha?

Quero lembrar que a tradução que trabalha as aliterações é de Bernardina da Silveira Pinheiro (Alfaguara, Rio de Janeiro, 2006). Nesse sentido, ela se aproxima mais do universo joyciano, que aprofunda algumas lições de Flaubert. Insisto, e ainda mais uma vez, que estou tratando de Joyce, embora sem pedir que os leitores repitam tudo para avançar na narrativa. É preciso salientar que sempre peço sobretudo aos meus alunos que trabalhem com simplicidade e de uma forma capaz de convencer o leitor. Para alcançar, porém, essa simplicidade, é preciso estudo, e estudo e estudo. Muito e sempre.

Exercício deste mês? Trabalhe o uso do artigo indefinido em frases onde apareça o artigo definido. Muitas, muitas vezes. Se quiser falar comigo acesse o meu site. Lá tem um blog, onde podemos conversar.

O narrador precisa desafiar o leitor com vozes de personagens

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Mario Vargas Llosa tem razão quando escreve que “o narrador é o personagem mais importante de todos os romances, sem nenhuma exceção, e aquele do qual dependem todos os demais (Cartas a um jovem escritor, Elsevier, tradução de Regina Lyra). É a partir daí, creio, que começa a discussão a respeito de estilo. Sobretudo porque ele adianta, de forma enfática, que muitos escritores, de fato, acreditam que são os narradores. “Estão errados”, acrescenta. A mão de ferro força a narrativa. Um ótimo começo e um bom debate.

Não se pode negar que desde sempre os escritores lutaram por um estilo. Até porque acreditaram — e acreditam — que o estilo é a principal característica da obra. E não só da obra, principalmente do autor. No tempo da glória do romance havia mesmo um escritor, e, em geral, mais do que um autor, como já se disse, verdadeira mão de ferro. Jorge Amado, no primeiro parágrafo de A morte e a morte de Quincas Berro D’água, chega a despejar acusações aos críticos, defendendo-se, num parágrafo desnecessário e forte. Que se pode fazer? Aquele é que se costumou chamar de estilo de Jorge Amado. Nem se discute. Graciliano Ramos, com todo o rigor formal, abre Vidas secas com piedade dos personagens, a quem chama de os infelizes. E sempre que simpatiza com os meninos, filhos de Fabiano e Sinhá Vitória, trata-os de “os safadinhos”.

É o estilo de Graciliano e não se discute. Embora não seja o mesmo estilo de Angústia ou de São Bernardo. É evidente, portanto, que Graciliano tem um estilo que o consagrou por causa do rigor formal,mesmo quando altera, minimamente, aqui e ali. Não se está aqui criticando nem Jorge Amado nem Graciliano Ramos. É uma constatação para efeito de análise. Ambos com suas grandezas e defeitos. Isso mesmo. O que se quer mostrar é a diferença entre o escritor, ou autor, e o estilo. Como se pode discutir o mesmo tema em Dostoiévski e Kafka, por exemplo. Ou entre Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. Que seja. Mas afinal o que é mesmo o estilo? Há muitas definições. A maioria se preocupa com a questão da linguagem. Se só. E apenas. É preciso ter muito cuidado.

Diz-se que estilo são as características lingüísticas de um autor. Está ligado à linguagem. E pronto. Na verdade é algo mais complexo, envolve uma série de elementos. E estendem-se os exemplos a escolas literárias, a épocas, a circunstâncias. Isso. Mas o estilo na criação literária — que é o nosso caso — não está ligado apenas à linguagem ou às exigências gramaticais. Ou sequer à desorganização. Nada disso. Vai muito mais além. Está ligado à maneira como o autor distribui os personagens, como eles entram ou saem de cena, como falam, como se comportam, a maneira de se relacionar com outros personagens, desenvolvimento de enredo, enfim, como o texto é estruturado. O estilo é a totalidade e não apenas, digamos, as frases, os parágrafos. E até mesmo aquilo que costumamos chamar de atmosfera. Enfim, o estilo são as características do autor.

Talvez nem se possa chamar de estilo, considerando-se o nível de complexidade. Não tenho essa palavra e prefiro continuar usando-a, sobretudo naquele sentido estabelecido por Alejo Carpentier em estudo brilhante: O estilo das coisas que não têm estilo. Até porque o crítico vai continuar chamando de estilo. Pois bem, nasce com Flaubert o escritor sem estilo, nesse sentido tradicional. Aquele que segue a mesma linha estrutural da frase em todos os livros. Ou seja, cada livro de Flaubert tem uma linguagem diferente, sobretudo no uso das expressões. Em princípio, o personagem pede o seu estilo próprio. O estilo de Madame Bovary não é em absoluto o estilo de Educação sentimental. Se mudo o personagem, muda a forma de escrever. Madame Bovary é mais enfático e, até certo sentido, emocional. Foi justamente este aspecto emocional que Flaubert retirou completamente de Educação sentimental e precisou, assim, alterar a estrutura da frase e, mais adiante, a apresentação do personagem, optando pela frieza do narrador onisciente e pelo comportamento de Frédéric. Embora tomado de amor pela Madame Arnaux, não permite arroubos de paixão sobretudo naqueles três primeiros capítulos, onde o personagem é tomado de tédio.

Pode-se dizer, compreendo perfeitamente, que um homem com tédio não se pode arder de amor. Compreendo. Mas não é assim. Ocorre que Flaubert exercitou ali o que ele achava essencial no romance: a emoção estética. Para ele, a frase valeria pela qualidade de suas palavras e jamais pelo conteúdo científico. Ou seja, sem a pregação religiosa, sem a documentação sociológica, sem os questionamentos científicos. A frase vale pela sonoridade ou não, pelo ritmo ou pelo andamento. Estética, pura estética, sem ter que provar nada, sem discutir nada, sem revelar nada — daí o possível romance sobre nada e que muita gente confundiu. “Le mote just” não servia para todas as frases, de maneira uniforme. A frase pertencia ao que se pode chamar o estilo do personagem e poderia mudar de um para outro, desde que fosse mantida a unidade do texto. A harmonia do romance.

Devido a este projeto literário, Flaubert retira o autor do texto e, segundo Mario Vargas Llosa, até mesmo o narrador, criando-se a figura do relator invisível. Por quê? Porque o narrador corre o risco de se emocionar, de se exaltar, de questionar. De forma que ao narrador “não é permitido celebrar as alegrias de seus personagens nem se apiedar de suas misérias: sua única obrigação é comunicá-la”. Assim muda-se tudo na estrutura da narrativa, conseguindo-se o texto pela Beleza da frase, do parágrafo, da página. Funda-se, dessa maneira, a sedução pelo olhar, pelo ver, antes mesmo da leitura, durante a leitura e depois da leitura.

Será possível então fazer exercício de estilo? É claro que pode. Leia uma história de jornal, em qualquer área, e conte-a em cinco linhas sem adjetivos, sem advérbios de modo, por exemplo, usando apenas a emoção estética. Ou seja, a frase bem elaborada, sem ansiedade, angústia ou prazer. Não é uma questão de concordar ou não. Basta fazer. Enfim, é apenas um exercício.

NA DANÇA DAS CENAS O PSICOLÓGICO SE APRESENTA

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Se o cenário ilude, esconde ou disfarça, a cena torna mais rápida a movimentação interna da prosa. É puro jogo, estratégia. O narrador convida o leitor a avançar e muitas vezes oferece vários caminhos de forma a impedir, por assim dizer, ilusões e divagações. Muita gente considera Graciliano Ramos frio, direto, incisivo, mas não é bem assim. O mestre alagoano conhecia não só o valor das palavras — tinha habilidades formais. A palavra é apenas um dos elementos da narrativa que exige mais, exige muito. Construir um romance pede perfeita consciência dos seus elementos internos.

Baleia, capítulo antológico de Vida secas, é composto por cenas — cada vez mais rápidas — quando o artista convencional optaria por divagações, diríamos, mesmo em se tratando de um animal. Para não perder a verossimilhança — o risco era muito grande — o narrador investiu nas cenas sobre cenas. Só uma pausa: na página 68, da 63ª edição, da Record, 1992, Graciliano mostra a qualidade técnica de sua obra, a respeito do assunto:

Fabiano modificara a história — e isto reduzia-lhe a verossimilhança. Um desencanto. Estirou-se e bocejou. Teria sido melhor a repetição das palavras.

É uma aula. E que ninguém diga que o autor é espontâneo. Nada disso. Ele próprio declara seus cuidados técnicos, conhecimentos, detalhes. Tudo de acordo com a estrutura do romance. É claro que respeito demais quem pensa diferente de mim. É claro. Literatura não é dogma de fé. As verdades são muitas, diversas, diferentes, e cada um com seus conceitos. Mas tenho sempre o cuidado de examinar as técnicas. Porque elas existem para isso.

Observa-se, ainda, que os autores gostam de dar informações técnicas sobre as suas obras em vários lugares da história, mas nem sempre o leitor — ou analista — está atento. São explicações que, em geral,passam despercebidas. Até porque o autor — através do narrador — faz isso de propósito. Já não digo que seja nesse caso especial. No entanto, é preciso examinar com cuidado. Com muito cuidado.

Na verdade, as cenas podem ser externas ou internas de ângulo aberto e externas e internas de ângulo fechado. No exemplo seguinte, a cena é externa de ângulo aberto porque mostra todos os movimentos, sem especificar o perfil do personagem, nem do ambiente. Todas as ações chegam diretas aos olhos do leitor. Há um painel vivo, inteiro.

Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé do turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado, agachada e arisca, mostrando as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se ainda mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a latir desesperadamente.

Na cena aberta de ângulo fechado, que virá agora, apenas Baleia participa. A narrativa é interiorizada, e a psicologia não é nem de longe convencional, realiza-se nas cenas sobre cenas e revela-se nos chamados verbos de movimento: fugiu, passou, meteu-se, dirigiu-se, etc. É interessante perceber como Graciliano muda o foco narrativo sem que isso cause traumas ao leitor nem altere o andamento do romance. Esta é uma das características essenciais do escritor alagoano. Isso tudo vem da influência do folheto de cordel, onde o aprofundamento psicológico vem nas ações. Isso quer dizer: nas cenas. E que é um resquício ainda da epopéia, em cuja estrutura o folheto se apóia. Vejamos o ângulo fechado da cena:

E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino aos pulos. Defronte do carro de boi faltou-lhe a perna defronte. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a partir posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro mas teve medo da roda.

Então se pode dizer que há uma diferença básica entre as duas cenas mesmo com as duas sendo vistas de fora: a) Na primeira, de ângulo aberto, todo o conjunto de elementos é visto pelo leitor , de modo a enriquecer sua visão dos fatos: b) Na segunda, o foco se estabelece sobre Baleia — de maneira quase exclusiva — para revelar, sobretudo, a queixa psicológica, mas revelada no movimento externo. Não há interiorização. O narrador enriquece as situações, como se trabalhasse com uma câmera, afastando-a ou aproximando-a para atingir a sensibilidade do leitor. Até porque ele pode recorrer, quando necessário, é claro, a um cenário que ilustra a ação, neste caso, um cenário psicológico. É o que se chama de cena sobre cenário, diferente daquele cenário sobre cena que nós vimos na coluna passado. E como seria esta cena sobre cenário. Assim:

Cena: “Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera”.

Cenário psicológico: “Os chocalhos das cabras tilintavam para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança”.

Cenário psicológico: “Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos na noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles”.

Cena: “Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido”.

O corte é necessário para efeito didático. Com calma podemos verificar, então, que o foco narrativo atua sobre Baleia, unicamente, e o próprio Fabiano desaparece até o final do capítulo.

Para exercício, procure criar um pequeno texto de até vinte linhas, onde os movimentos do foco narrativo — ora aberto e amplo, ora fechado e único — apareçam com clareza.

Voltaremos ao assunto.

TEM BARULHO? O CENÁRIO RESOLVE

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Atenção: não se pode transformar o elemento artístico em trabalho burocrático. Cena aqui, cenário acolá, diálogo mais adiante. Todos sabemos disso. Criação é disciplina, tudo bem. Mas é possível separar, cuidadosamente, as partes de um romance, por exemplo, para conhecê-lo na intimidade. O domínio da técnica é fundamental. De forma que além do estudo das cenas — movimentos — e dos cenários — sem movimento —, em separado, precisamos verificar a forma como vão se relacionando sem que o leitor perceba. Além disso, os cenários podem esconder ações que não parecem importantes e vão, pouco a pouco, enredando o leitor desprevenido.

O cenário, já dissemos, esconde ou anula a ação — vejam o exemplo de Educação sentimental, de Flaubert, ou Adeus às armas, de Hemingway — e a cena permite maior agilidade à narrativa: os romances de sucesso geralmente trabalham com cena sobre cena. Aqui, vamos estudar cenários sobre cena, que permitem equilíbrio no movimento interno do texto. Observem que não estamos falando, de propósito, em história ou enredo, mas de narrativa e texto, técnicas que, de forma alguma, são iguais. Sem esquecer nunca que história é uma técnica — não envolve trama, por exemplo —, enquanto enredo pede uma história com suspenses e movimentos.

Há, pelo menos, duas maneiras de conduzir o texto nessas situações: a) Cenário sobre cena; e b) Cena sobre cenário. É aqui que esse tal trabalho burocrático começa a desaparecer. Desaparecem o cenário puro e a cena pura. Começam a confundir o leitor. A questão é que o cenário sobre cena concede menor velocidade ao texto, e a cena sobre cenário faz a leitura correr mais rápida. Bastam observação e estudo. Sem esquecer, ainda, um pouco mais adiante: a) Cenário sobre cenário; e b) Cena sobre cena.

Usaremos textos de Graciliano Ramos para o estudo de cenários sobre cenas. É algo valioso e muito importante, porque estabelece um jogo de sedução do narrador sobre o leitor, fazendo-o apreender o espírito do livro, segundo suas próprias estratégias. É preciso dominar o assunto, sem que signifique camisa-de-força. O artista é livre, sempre. No entanto, é necessário conhecer a intimidade da obra literária. Repito. Sempre tive escrúpulos para escrever sobre esses assuntos. No entanto, pouco a pouco, fui me convencendo de que essa espécie de didática — tantas vezes considerada inútil — concede uma visão específica sobre a composição da obra de arte literária.

O que é um cenário sobre cena?

Basta observar o exemplo que temos aqui em Vidas secas. Didaticamente: a) O cenário abre o parágrafo, que terá b) continuidade com uma cena, e c) fecha com um cenário. Esses movimentos rápidos, são capazes de seduzir o leitor, com grande habilidade. O narrador, contudo, pode usá-la com várias finalidades. Entre outras coisas, para esconder do leitor as verdadeiras intenções narrativas. Sempre assim:

O narrador deve usar as técnicas que lhe pareçam mais apropriadas para aquilo que quer alcançar. O que pretende? Qual é o jogo? Como atrair o leitor para as conveniências do texto? Qual a estratégia? Quais as estratégias?

No exemplo seguinte, observaremos que o narrador do romance quer, de imediato, colocar o leitor dentro da história, cujo cenário é o personagem principal, porque através dele transcorre o drama dos retirantes, junto com o cenário — que não se afastam um do outro. Portanto, nada mais correto do que criar um cenário sobre cena. Ou seja, os movimentos dos personagens — ação — são motivados pela inclemência da seca — cenário. É aí que está a verdade do texto. É claro que pode haver outra estratégia, como não. Contudo, o que importa aqui é análise pura e simples do que temos diante dos olhos.

Para estabelecer a função da cena, que é de atrair o leitor imediatamente, o narrador procura os efeitos mais eficazes, impondo um cenário inquietante.

Então vamos passar para o estudo desta técnica.

Cenário sobre cena:

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe através dos galhos pelados da caatinga rala.

Por que cenário sobre cena? Porque o cenário encobre a ação dos personagens, embora examinado por esses mesmos personagens. Em síntese: o cenário prepara a apresentação dos personagens, ainda que seja numa única linha.

Cenário: “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes”.

Cena: “Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra”.

Cenário: “A folhagem dos juazeiros apareceu longe através dos galhos pelados da caatinga”.

Então agora se pode observar, com a maior clareza, os movimentos internos que compõem o parágrafo. Através de leves referências ao cenário, que abre e fecha o texto, o narrador prepara o leitor para o drama dos retirantes de Vidas secas. Aqui há uma técnica, estamos examinando, que precisa ser estudada com atenção: um perfeito cenário sobre cena. Neste caso específico, o cenário prepara o leitor para o que vem a seguir. A boa literatura é feita nesses mínimos detalhes. Algo quase imperceptível ao leitor, mas profundamente bem elaborado. Aí se mostra o gênio do autor. Na obra de arte, a técnica sempre é sutil. Rápida, leve. A principal função é seduzir o leitor. Repito sempre. Exaustivamente.

É sempre interessante destacar que o cenário sobre cena dá um privilégio à ambientação onde se desenrola a ação. Portanto, o cenário prepara a ação/cena. E, logo depois da ação/cena, volta ao cenário. O que mostra, com clareza, que cenários e personagens ocupam um só espaço, o mesmo espaço, estão unidos. Porque pode acontecer também de ambos ocuparem espaços diferentes, criando uma contradição. Situações opostas. Sem dúvida alguma.

Observando bem, a cena, embora indireta, subjetiva, se refere a um acontecimento geral — a viagem dos retirantes pela terra árida — e dá continuidade ao cenário de abertura. Neste caso o cenário é superior à ação. Por isso o cenário sobre cena. E depois cenário. Destaque-se bem este movimento interno. Mas é preciso fechar o parágrafo com o cenário. Se por acaso não se fecha, a ação corre em paralelo, e não dentro do cenário. Não vão ter continuidade sempre. Infinito. Está bem?

Agora copie, literalmente copie, o parágrafo de Graciliano Ramos.

...

Vamos criar um cenário que substitua o do livro. Só o cenário, a cena é a mesma. Lembrando: abre-se o texto com um cenário, e fecha-se com outro cenário. A cena fica no meio.

.... (Copie a cena como está no livro)

Invente seu exercício, lembrando-se: primeiro o cenário, depois a cena, e fecha com um cenário.

Não tenha vergonha ou escrúpulo de fazer aquilo que os músicos e os artistas plásticos fazem continuamente. Todos os artistas se exercitam sempre. Todos. Os escritores imaginam que podem tudo sem estudar. Mesmo os cineastas gastam fortunas para repetir cena por cena, diálogo por diálogo, cenário por cenário. Flaubert não só escrevia e reescrevia como pedia ajuda a amigos. Lia, relia. Não acredite em literatura espontânea. Jack Kerouac chegou a escrever uma versão de On the road em francês, e reescreveu o romance várias vezes. Aquela mentira de que ele escreveu o livro em quarenta dias é mentira mesmo.

Repita o exercício quantas vezes forem necessárias. Na próxima coluna, trataremos de cena sobre cenário.

ANDAMENTO SEGUE RETO POR LINHAS TORTAS

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Na coluna anterior começamos a mostrar como uma narrativa é construída cena após cena a princípio de acordo com o narrador e, em seguida, conforme a pulsação do personagem, no caso Inácio Ramos, do conto O machete, de Machado de Assis, lento, intimista, reflexivo. Em seguida falamos de Carlota, mais rápida, mais vibrante. É preciso ter o conto por perto para leitura e releitura. Um escritor não lê como o leitor comum: examina, questiona, pergunta.

Estamos aqui criando as bases da construção narrativa. É um estudo. Nada mais. Serve para criar a absoluta consciência narrativa. Não é um modelo, nem pode ser. Lembre-se dos artistas plásticos que até imitam os mestres. Tratamos de um exercício. Exercício para o salto. Para que você conheça a intimidade da história. Agora tratamos dos personagens principais — Inácio e Carlota; e, em seguida, do personagem ilustrativo — o pai de Inácio.

O narrador onisciente, então, recorre à técnica do personagem ilustrativo, no caso, o pai, que dá esse andamento lento, ou devagar, à história, mesmo que não pareça no primeiro momento. Verifique com atenção: a frase é pequena, breve, e o ponto cria uma distância proposital entre ela e a segunda. Há um corte, uma distância, como se, numa composição musical, a última nota se distendesse, deixando apenas o som pairar na narrativa. Assim:

Inácio Ramos contava // apenas dez anos // quando manifestou // decidida vocação musical //

Nesse andamento, e com uma quebra narrativa, surge a segunda frase:

Seu pai, músico da imperial capela, ensinou-lhe os primeiros rudimentos de sua arte, de envolta com os da gramática, de que pouco sabia.

Entre a primeira e a segunda frases parece existir uma narrativa linear. Não é verdade. O narrador, com profunda leveza, afastou-se de Inácio, para introduzir o pai. Mais uma vez: quebra narrativa, proposital. Caso ele escrevesse: “(Ele) Estudou com o pai, músico da imperial capela”, haveria, aí, um texto linear. A retirada da expressão “ele estudou com o pai” cava um abismo, interrompe a linearidade, e faz surgir um personagem, que será apenas ilustrativo.

A terceira frase, então, ainda mais lenta, provoca um movimento de absoluta distensão narrativa, compondo a pulsação do personagem:

Era um pobre artista cujo único mérito estava na voz de tenor e na arte com que executava a música sacra.

Observaram agora uma novidade? Machado de Assis retirou as vírgulas tradicionais, de forma que a frase manteve a lentidão rítmica e visual, e a limpeza visual fez a narrativa ganhar maior distensão, como uma espécie de eco que vai se movimentando no interior da frase.

Em geral, ela seria escrita assim:

Era um pobre artista, cujo único mérito estava na voz de tenor, e na arte com que executava a música sacra.

Ocorre que o escritor é extremamente hábil e não poderia, com o uso da vírgula, chamar a atenção para a ironia da frase: como pode ser um único mérito usar bem a voz e a arte? É pouco um artista ter o mérito de dominar a sua arte? Ou ele não é tão assim, porque era um “pobre artista”? Pobre artista em que sentido: por que não tinha recursos artísticos ou por que não tinha recursos financeiros? Não se esqueçam que a ironia e a ambigüidade são duas das melhores qualidades de Machado de Assis. Assim como a simulação. Então se conclui que ele retira as vírgulas, de um lado, para possibilitar a distensão do som na frase e, de outra maneira, para evitar que o leitor perceba o jogo de ironia e ambigüidade já no primeiro instante.

Na terceira frase:

Inácio, conseguintemente, aprendeu melhor a música do que a língua, e aos quinze anos sabia mais dos bemóis do que dos grandes mestres.

A narrativa diminui a intensidade, sobretudo com o uso do advérbio: “conseguintemente”. Parece que houve rapidez, mas a lenta reflexão nos coloca diante de nova ambigüidade: como podia aprender melhor a música, “conseguintemente”, se a única qualidade do pai eram a voz e arte? Vejam bem: a única vantagem de um pobre músico. Nesse ir e vir de informações do personagem ilustrativo percebe-se como o andamento lento sofreu nova retração, e ficou mais lento. A narrativa é montada e remontada, sem que ganhe velocidade e leveza.

Na próxima aula continuaremos a refletir sobre a criação de Machado de Assis, através da estrutura das cenas.

Quarta frase:

Ainda assim sabia quanto bastava para ler a história da música e dos grandes mestres.

Frase limpa, que permite avançar no andamento, desaguando numa informação elíptica:

A leitura seduziu-o ainda mais; atirou-se o rapaz com todas as forças da alma à arte do seu coração, e ficou dentro de pouco tempo um rabequista de primeira categoria.

Aí, sim, a frase começa a ganhar movimento, sobretudo por causa do verbo altissonante “seduzir”, até o ponto e vírgula, tornando-me mais veloz nos movimentos finais, o que faz retornar ao mesmo movimento do princípio. Mas observe que o verbo altissonante relaciona-se com a leitura, e não com o pai: “A leitura seduziu-o ainda mais”. Por último, a informação sobre a rabeca aparece rapidamente, sem nenhuma informação ou explicação para o leitor. Num autor convencional haveria, pelo menos, uma frase para introduzir a rabeca. Esta velocidade prepara o andamento mais rápido do próximo parágrafo.

Tudo isso para demonstrar de que maneira técnica o narrador de O machete procura encontrar os movimentos desejados para colocar o leitor no ritmo do texto. De forma que, agora, podemos fazer um exercício de cena interna com tônica psicológica. Sem o personagem ilustrativo. O que interessa é o exercício de cena externa.

Vamos fazer, em conjunto, uma cena interna, passo a passo. Neste caso, a cena interna com tônica psicológica pede um andamento lento, mesmo quando a narrativa avança. Mas escreva, neste momento, considerando suas idéias. Depois reescreva e reescreva. E escreva e reescreva. Estamos fazendo um exercício. Com cautela.

Exercício de cena interna

a) Argumento

Tome nota: Numa agência bancária, cinco pessoas trabalham numa sala. Quatro homens e uma mulher. A mulher é cortejada pelo chefe, mas decide não aceitar uma relação. Daí em diante o chefe passa a colocar em dúvidas suas qualidades funcionais. Ou seja: coloca defeito em tudo o que ela faz.

b) Início

Comece o exercício por uma cena interna com tônica psicológica, mostrando a formação da moça. Competente na escola, nas relações sociais, na família. Então faça o seguinte com a primeira frase do exercício:

Enquanto caminhava para a escola, todos os dias, Adélia projetava o futuro.

Encontre aí, a sua própria frase:

Enquanto caminhava para a escola, todos os dias, Adélia…

Ou assim:

Enquanto caminhava para a escola,……………………, Adélia projetava…………………..

NOTA: A coluna de Raimundo Carrero é publicada originalmente no jornal Pernambuco, de Recife. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

A NARRATIVA É CONSTRUÍDA DE CENA EM CENA

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Quando me refiro à simplicidade do texto, quero mostrar que o primeiro compromisso do narrador é fazer com que a história chegue aos olhos do leitor comum sem atropelos. Ou seja, mostre-se comum, leve, e as cenas pareçam apenas movimentar a narrativa. Lembrando, mais uma vez, aquilo que repito sempre: a gente escreve como fala. Assim. Exemplo: quando o personagem vai ao cinema, como é que se escreve? “José foi ao cinema”. Quem foi que disse que se escreve: “Naquela noite monótona e silenciosa, o pobre José, cansado da vida, foi ao cinema”. Nunca, jamais. Isso é herança de um tipo de romantismo sem qualquer eficácia. Literatura é simplicidade ainda que cheia de sofisticação. No seu mistério e no seu segredo. E só. Basta. Quando um autor consciente escreve assim, desconfie. Tem coisa.

No entanto, a simplicidade em literatura está cheia de sentidos. Simples não significa simplório, tosco, vulgar, ingênuo. Se você consegue escrever do mesmo jeito que fala, está indo muito bem. A não ser que seja discursivo, retórico, eloqüente. Porque também tem gente assim. Aí controle seus vícios. Portanto, no primeiro impulso — ou na primeira redação — escreva com essa simplicidade, se possível seguindo aquela velha cantilena: sujeito, verbo, predicado. Um passo depois do outro. “José foi ao cinema. Chovia.” Observe que o personagem está em cena e que já existe aí uma atmosfera. Está chovendo muito? “Correu, entre o estacionamento e o cinema, para não se molhar.”

Então: “José foi ao cinema. Chovia. Correu entre o estacionamento e a calçada para não se molhar”. É assim? É assim mesmo. Renovando: no princípio, no primeiro impulso, na primeira redação, é sempre assim. “A água escorreu nos cabelos e nos ombros”. Quer um pouco de leveza na frase? Tudo bem. “Apesar disso, a água escorreu nos cabelos e nos ombros”. Ah, não gosta. Então escreva: “A água escorreu nos cabelos e nos ombros, quase pisa numa poça já na calçada”. Já tem calçada. E agora? “Apesar disso, a água escorreu nos cabelos e nos ombros e quase pisa numa poça”. De propósito foi criada uma cena seguinte: “e quase pisa numa poça”. Uma frase que, no entanto, revela a ansiedade de José. Sem esquecer: cena é o resultado de personagem mais ação mais seqüência.

É claro que há muitas alternativas melhores, bem melhores. Estamos apenas tentando mostrar uma coisa fundamental: a cena resolve o conflito narrativo com eficiência sem o uso abusivo de palavras soltas, adjetivos e advérbios, por exemplo. O que não significa que deve ser sempre assim. Mas aqui vale o exercício. Pouco a pouco descubra os seus caminhos. Aqui, neste instante, estamos trabalhando com a simplicidade. Muita coisa vai acontecer ainda. O importante é saber que se escreve com simplicidade, sem afetação. Faça exercícios, sempre e sempre, quando tomar plena consciência do domínio, então procure outros caminhos. O caminho mais próximo é o da descoberta da pulsação narrativa do personagem. Isso é básico. Sem pressa, porém. Conte primeiro a história, linearmente. Depois procure conhecer melhor a intimidade do personagem. Isso lhe oferecerá condições para, com calma, sofisticar a narrativa. Suando. Às vezes suando muito. “Na fila da bilheteria encontrou Maria, que lhe estendeu a mão.” No primeiro instante, a frase é assim mesmo. Mas com um pouco de cuidado você entra na pulsação de Maria, que é mais lenta do que a de José, você percebeu, não foi? Faça assim: coloque uma vírgula depois de Maria. A frase apresenta uma leve parada, com a vírgula, e diminui a tensão da cena. Quer ver?

José foi ao cinema. Chovia. Correu entre o estacionamento e a calçada para não se molhar. Apesar disso, a água escorreu nos cabelos e nos ombros, quase pisa numa poça. Na fila da bilheteria encontrou Maria, que lhe estendeu a mão.

Observe que a sofisticação vem depois.

É preciso agora trabalhar com mais calma e mais paciência. Vamos experimentar a diferença entre cenas abertas e cenas internas, que parecem a mesma coisa, na primeira leitura, mas que são profundamente diferentes. Tudo isso depende da montagem da história e da pulsação narrativa do personagem. Examinando, mais detidamente, o caso de O machete, conto de Machado de Assis, verificamos que a história é contada pelo narrador onisciente, que dá orientação geral à narrativa, impondo o ritmo, com variações conforme a intervenção do narrador onisciente, personagens ilustrativos, comentários, diálogos, tudo de acordo com o ponto de vista do personagem.

Percebemos, assim, que o narrador alcançou incrível simplicidade no texto, mas avançou na sofisticação. Quando Machado de Assis escreveu o conto optou por dois pontos de vista em oposição: de Inácio Ramos e de Carlota. Dessa forma é possível perceber que a redação é simples, mas a técnica é sofisticada. A técnica não confunde o leitor comum e o conto é lido como uma história. Na verdade é uma história qualquer, mas a pulsação narrativa mostra-se plena de invenção.

Inácio Ramos é mais interior, introspectivo, conforme a pulsação, a primeira parte do conto é assim; Carlota é mais rápida, mais ágil, superficial, segundo a pulsação dela própria. Esses andamentos dividem o texto em dois momentos essenciais: um noturno, interno, para Inácio, e outro solar, externo, para Carlota. Quando lido, esses dois movimentos se escondem e dão a impressão de um só. Tudo porque a primeira leitura é emocional. Na maioria dos casos interessa o enredo, a sucessão de fatos, o lúdico. Básico.

Dessa forma, podemos observar que a primeira parte é intimista, corresponde ao andamento de Inácio, que é lento, para terminar bem mais rápida, porque corresponde ao começo do andamento de Carlota, representada na cena da execução da elegia da mãe do personagem. Esses são momentos significativos para o estudo do conto. E, creio, nos coloca de forma definitiva na pulsação narrativa da história.

Andamento lento de Inácio Ramos

Quem é Inácio? Como ele se comporta? Como age? O narrador do conto deixa que ele se apresente no desenvolvimento da história, na técnica. Não diz, narra. Isso é essencial para a análise da montagem do conto e do personagem, ambas absolutamente integradas. Sabemos, pelo andamento da primeira parte — noturna —, que se trata de uma pessoa metódica, estudiosa, conservadora, simples. Mas quem diz isso? Dizer ninguém diz. No andamento, o narrador mostra. É uma questão de leitura lenta. Aliás, só um lembrete: a primeira leitura já foi feita, ela é emocional, rápida; e a segunda, também, contemplativa, de olhos fechados, de exame interior. Agora a terceira: técnica.

Devemos observar, com lentidão e astúcia, a primeira cena interna, sem nenhuma exuberância exterior:

Inácio Ramos contava apenas dez anos quando manifestou decidida vocação musical.

Pronto: o personagem e a história se apresentam.

CURVAS E RETAS NO CAMINHO DA FICÇÃO

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Na coluna passada, dissemos que há dois caminhos para o narrador do texto literário: 1) Digressão; 2) Comentários. E mostramos, claramente, que a digressão foge do objeto central, numa fuga com retorno técnico. Verificamos, agora, que o narrador onisciente tanto pode usar o comentário quanto a digressão, tomando como exemplo os dois primeiros capítulos de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Na técnica, os dois capítulos, vistos isoladamente, são comentários, isto é, na construção de cada. Mas unidos, os dois capítulos funcionam como digressão.

O comentário, de começo, meio e fim, traça uma linha reta. Na digressão há, pelo menos, uma reta, uma curva e, finalmente, uma reta. Pelo menos em princípio, para efeito de compreensão. Agora veremos que os dois capítulos são comentários, mas com classificação diferente. Estudamos, inicialmente, que há três formas de comentário:

1. Comentário ou análise de um fato;

2. Comentário que corresponde à reação ou momento do personagem;

3. Comentário ou crítica irônica ou maliciosa;

Ou seja, o capítulo Do título é (1) comentário de um fato, (2) ligeiro comentário ou crítica maliciosa, (3) seguindo-se o comentário de um fato e uma crítica ou comentário malicioso; e o segundo capítulo Do Livro é um comentário que corresponde a uma observação ou um momento do personagem. Por enquanto, vamos estudar apenas o primeiro capítulo, conforme os parágrafos.

1. Comentário de um fato:

Uma noite dessas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.

— Continue, disse eu acordando.

— Já acabei, murmurou ele.

— São muito bonitos.

2. Comentário ou crítica irônica ou maliciosa:

Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota a meus amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: “Dom Casmurro, domingo vou jantar com você”. — “Vou para Petrópolis, Dom Casmurro, a casa é a mesma da Renânia; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo”. — “Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã, venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote; dou-lhe chá, e dou-lhe cama; não lhe dou moça”.

3. Comentário à reação de um fato e comentário ou crítica irônica e maliciosa:

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas lhes pôs o vulgo do homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando. Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.

Percebemos, agora, o que vem a ser a técnica geral e a técnica particular. Na técnica particular, há um comentário de começo, meio e fim. Na técnica geral, uma digressão. Ou seja, os dois comentários juntos formam uma digressão porque realizam uma curva até que o narrador chegue ao ponto central.

Assim temos a linha do capítulo:

Comentário a um fato malicioso fato e malicioso

Começo meio fim

Apesar da diversidade de técnicas, o comentário não faz uma curva, não abandona a linha narrativa, não desloca o interesse do leitor. Por isso é comentário. O comentário obedece a um rigor técnico, mas sem engessar o texto, exato e certo. Por acaso, terá que ser sempre assim? Não. O escritor tem o direito e a obrigação de encontrar seus próprios caminhos. Mas os caminhos se tornam mais fáceis com o estudo e o exame dos clássicos. Sempre acreditando que o narrador pode fazer o que quiser, em todos os momentos. O estudo e o trabalho devem ser, porém, constantes.

Exercícios

Vamos pensar juntos. Eu quero comprar uma roupa. É um fato? É. Pois bem, é preciso agora comentar este fato. Comece dizendo que foi a uma loja, no centro da cidade, e, ao entrar, foi recebido por um vendedor. Está bem assim? Se não quiser, mude de assunto. Conte como chegou à loja e como ocorreu o encontro com o vendedor. E, é claro, narre de que maneira foi recebido e os encaminhamentos. Ou seja, mostruário de roupas e os detalhes: cintura, perna, bolsos, essas coisas. Leia mais uma ou duas vezes o comentário de abertura do romance de Machado de Assis. Faça o exercício.

Vamos ao segundo comentário ou crítica irônica ou maliciosa. Como é isso? Você viu que Machado de Assis usa um ligeiro diálogo, depois do comentário do fato. Mostre uma cena que a roupa que lhe é apresentada parece feia e deselegante. Em seguida, crie o diálogo. Ou apenas uma narrativa. Fique livre para o que considerar melhor.

Continuando o exemplo, escreva o comentário do fato com um comentário malicioso. Ou siga o seu próprio exemplo.

Até mais.

COM AÇÚCAR E COM AFETO, O DOCE CAMINHO DAS DIGRESSÕES

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O escritor precisa sempre acreditar na única lei que lhe é imposta: nenhuma regra lhe pode ser imposta, nenhum decálogo e, claro, nenhum regulamento. Tenho repetido muito isso, não é? Ocorre que muitos equívocos são lançados sobre as oficinas literárias. É preciso esclarecer. O estudo da técnica torna o artista consciente, e não serve para ser copiado. Mas um romance, por exemplo, pode ter dois caminhos seguros, que favorecem a crítica do próprio trabalho. São eles: digressão e comentário. Pode parecer, no entanto, não são a mesma coisa, não é. Eis a diferença: na digressão, o narrador se afasta do objeto central; no comentário, o mesmo narrador não larga este objeto.

Compreendo que escrever uma digressão não é tarefa fácil. No entanto, percebe-se logo que ela pode e deve ser usada quando for necessário seduzir ainda mais o leitor, sobretudo com relação a enredos ou com relação a mudanças de enredo, ou técnicas ainda mais sofisticadas. Machado de Assis era mestre nesta arte, que aprendeu com Lawrence Sterne e não esqueceu mais. Veja bem o exemplo de Dom Casmurro:

Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir meu nome e escondi-me atrás da porta. A casa era a da rua de Matacavalos, o mês de novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas da minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857.

Dá para perceber? Olhando — ou lendo — bem, o objeto central da narrativa é a frase:

Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir meu nome e escondi-me atrás da porta.

Não é verdade? Mas na frase seguinte, o narrador parece esquecer o que afirmou e investe na digressão, afastando-se do objeto central e levando o leitor com ele. Algo feito com muita calma, lentamente.

A casa era a da rua de Matacavalos, o mês de dezembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas da minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias velhas.

Uma conversa leve, de narrador experiente que, num rápido momento, desvia o leitor numa conversa desconfiada, até retornar ao objeto central:

O ano era de 1857.

Manobra de quem sabe o quer e para aonde vai. Faz uma curva narrativa, distrai o leitor e volta ao começo ainda que por outro caminho. Isto é uma digressão legítima. Sim, para efeito de estudo e de consciência literária, o que é uma digressão? E para que serve?

Sempre assim: no momento em que for preciso distrair o leitor para que ele não acompanhe o rigor do enredo, a digressão precisa ser realizada, da mesma forma que fazemos com as pessoas quando pretendemos surpreendê-las. Para exemplo, vamos recorrer aos meninos, que são mais hábeis no destino narrativo. E refletimos sem gravidade. O menino da história e o menino de Clarice Lispector.

Só uma brincadeira infantil, que ajuda a refletir, sem forçar. Vamos ver:

— Eu quero uma mordida neste doce.

— Não dou.

— Veja como a torre da igreja está brilhando.

— Onde?

— Veja com cuidado.

— Não consigo.

— Ah, você não sabe olhar.

— Ih, cadê meu doce?

— O gato comeu.

O que aconteceu? Enquanto distraímos o amigo, aí está a digressão, o doce foi roubado. Mudança de rumo ou de assunto. Não é mesmo? Certamente o outro vai olhar a torre da igreja — onde, com certeza, não está acontecendo nada — e lhe roubamos o doce. Qual o objeto principal: o doce. Não é assim? E qual é a digressão? A torre da igreja. O exemplo é ingênuo e infantil, concordo. Mas, creio, eficiente.

Assim podemos, então, trabalhar a digressão:

Objeto central:

— Eu quero uma mordida neste doce.

— Não dou.

Digressão:

— Veja como a torre da igreja está brilhando.

— Onde?

— Veja com cuidado.

— Não consigo

— Ah, você não sabe olhar.

Objeto central:

— Ih, cadê meu doce?

— O gato comeu.

Não é mais do que isso. Em princípio, com essa tranqüilidade. É claro que coloquei diálogos, mas se há uma narrativa, então é preciso escrever da seguinte maneira:

O menino queria uma mordida no doce do colega, mas não lhe foi permitido. Ele apontou a torre da igreja chamando a atenção para o brilho que estava surgindo. O colega não viu, embora olhando com muito cuidado. O doce lhe foi roubado pelo gato. Que gato? Difícil era esconder a boca cheia.

Agora o desenvolvimento, mais uma vez:

Objeto central:

O menino queria uma mordida no doce do colega, mas não lhe foi permitido.

Digressão:

Ele apontou a torre da igreja chamando a atenção para o brilho que estava surgindo. O colega não viu, embora olhando com muito cuidado.

Objeto central:

O doce lhe foi roubado pelo gato. Que gato? Difícil era esconder a boca cheia.

Digressão é isso: desvio da atenção pela mudança de rumo ou de assunto, dependendo da função e do efeito.

Veja o que diz Houaiss sobre o assunto: “Desvio do assunto principal ou de rumo”.

EXERCÍCIOS

Em princípio copie, copie mesmo, copie o diálogo. Divida em partes: objeto central, digressão, objeto central. Agora copie, copie mesmo, a narrativa. Divida em partes: objeto central, digressão, objeto central. Isso não é gratuito, é fundamental. Não se entende apenas com a mente, mas com a escrita. Repita. Memorize. Repita. Memorize. Escreva, escreva, escreva.

Vamos a um exercício. As palavras do objeto central são de Clarice Lispector. De propósito, inventei a digressão.

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Muita gente nas calçadas e os vendedores gritando, misturando-se um com os outros, pregando as delícias das prendas, e aquele menino sozinho encostado no poste. Um ar desvalido, de abandonado. Ela depositou o volume no colo e o bonde começou a andar.

Agora invente a sua digressão, tomando como base o movimento dos carros na outra rua:

Objeto central:

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde.

Digressão: (fazer o exercício)

Objeto central:

Ela depositou o volume no colo e o bonde começou a andar.

Então vamos a outro exercício, com invenção livre na digressão — ou seja, não copie o texto de Clarice mas invente outro:

Objeto central:

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde.

Digressão: (fazer o exercício)

Objeto central:

Ela depositou o volume no colo e o bonde começou a andar.

Estes exercícios são fundamentais. Não adianta apenas dizer: compreendi, entendi — tem que fazer. Se possível, repete e repete e repete. Até considerar o domínio do texto.

MACHADO SABIA BATER A CARTEIRA DO LEITOR

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No deslocamento de cenas, Machado de Assis muda a função e o efeito da narrativa, e bate a carteira do leitor, que passeia em caminhos nunca dantes navegado. É o que acontece na abertura de Um homem célebre, em que a fala de Sinhazinha Mota tem a mesma função — admirativa —, mas o efeito que provoca no leitor é completamente diferente, quando se observa, com muita atenção, a cena em ângulo aberto em que, mesmo com muita movimentação, é comentada a postura da personagem.

Mesmo assim, Machado cuidou de não repetir as expressões de Sinhazinha Mota, embora avise que ela falou naquelas circunstâncias. Consciente do que escrevia, o autor preparava uma armadilha para o leitor, sobretudo para este leitor inteligente, que estamos pedindo aqui. Depois da fala, na cena de abertura é escrita uma digressão.

Por que é digressão e não comentário? Porque se refere à festa e à viúva Camargo, que tira a atenção da fala de Sinhazinha Mota, ou seja, a abordagem de admiração diante de um homem célebre, reconhecido pelas qualidades de compositor e não pelas qualidades físicas. Até porque não havia fotografias nos jornais nem, é claro, a televisão. Então, o leitor é induzido a acreditar que ali está uma celebridade. Daí o “gesto admirativo” da moça. Para não expor o efeito diretamente, o narrador faz a digressão, seguida de um diálogo e de uma cena de ângulo aberto.

Para depois, e somente aí, oferecer uma nova função da fala, que está ligada a um novo efeito que o leitor atento verificará. O narrador comenta, e comenta com eficácia, criando uma ambigüidade. Ou seja: de um lado a admiração e de outro a censura ao homem comum, vulgar, sem graça, transferindo o comentário indireto para a figura do compositor, que estaria sendo incomodado por causa da fama.

Fala de abertura:

— Ah, o senhor é que é o Pestana?, perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. Logo depois, corrigindo a familiaridade: — Desculpe meu modo, mas… é mesmo o senhor?

Aí funciona a admiração pelo compositor, pelo autor de polcas tão famosas, daí o gesto admirativo. Sempre isto: o segredo está nestas duas palavras: “gesto admirativo”. Mas há ainda uma censura interna: “Logo depois, corrigindo a familiaridade”. Será que ela se censurava porque se tornara familiar diante de um homem célebre? Neste momento ocorre, pelo menos do ponto de vista do leitor, uma censura à maneira pouco delicada como ela se aproxima do músico. Ela própria freia os movimentos. E, para esta cena, o que ocorre é isso mesmo. Porque a função é admirativa. Reforçamos: a função é admirativa pelo criador das polcas. E só. O efeito é que muda mais tarde. Até porque não há nenhuma outra circunstância.

Para não antecipar a narrativa e sair do acontecimento com o leitor, entra agora a digressão. E digressão porque o narrador se afasta do objeto principal: a fama de Pestana. Mesmo que mais tarde ela apareça, está afastada do objeto, até o diálogo. Pelo menos.

Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço e ia chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile, apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875… Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha. Nem foi preciso acabar o pedido, Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.

Portanto, se observarmos direitinho, a cena está congelada porque não houve prosseguimento, interrompida pela digressão. Prestando bem atenção: Pestana sai do piano, é parado pela moça, e aí fica. Está parado. A digressão torna-se plena. Ele é substituído pela viúva Camargo, de biografia tão rápida que interrompe, ainda mais uma vez, a seqüência. Em seguida vem uma cena anterior, com Pestana tocando para as danças, com um diálogo, seguido de comentário. Por que comentário? Comentário porque o narrador não se afasta do objeto central do texto. Ou seja, comenta o baile e a participação de Pestana.

— Diga, minha senhora.

— É que nos toque agora aquela sua polca “Não bula comigo, nhnhô”.

Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavaleiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna

Agora, reaparece a Sinhazinha Mota. Conforme o narrador, a fala se repete, embora não esteja objetivamente na página. Na abertura do conto, o texto é escrito pelo narrador onisciente, através da moça que fala. Nas marcações, porém, estão os indicativos da função, com estas palavras: “Gesto admirativo”. E ainda aqui: “Corrigindo a familiaridade”. Percebemos, agora, a expressão: “Daí o gesto admirativo”. Por que o gesto admirativo? Por que ele é famoso? A função, que era essa, na abertura do texto, muda inteiramente. Porque, neste momento, vai funcionar o olhar da personagem, que lança uma censura a Pestana, por usar roupas tão convencionais, tão comuns. E ela parece dizer, interiormente: “Custa crer que esse homem seja o compositor”.

Narrativa segundo o olhar da personagem:

Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa do jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a polca. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu cada vez mais enfadado até que, alegando dor de cabeça, pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.

O julgamento começa com o olhar da personagem formulando a frase em que ela “estava longe de supor”, ou seja, como podia reconhecer nele um compositor famoso e brilhante, “metido numa sobrecasaca de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado”? Seria ele o mesmo Pestana? Não podia acreditar? E, agora, vem a frase definitiva: “Daí a pergunta admirativa”.

Portanto, fica fácil perceber que a função — admirativa — é a mesma, mas o efeito — de quase constrangimento — muda completamente. Sem esquecer a expressão: “Corrigindo a familiaridade”. Ela fora familiar porque ele se mostrava tão comum. Na abertura, a fala passa, para o leitor, como admiração pelo artista; na segunda, há a censura pela vulgaridade de Pestana, um homem tão comum que se vestia daquele jeito. Vejam bem: não é exótico; é convencional, comum, trivial, algo que não se ajusta numa pessoa tão famosa, tão criativa.

E o julgamento não é do leitor, em princípio. É dela própria, Sinhazinha Mota, e é o que o narrador diz: “Daí a pergunta admirativa”.

Fica aqui a certeza da pulsação narrativa: escrever bem não é apenas tirar as palavras que possam parecer excessivas, digamos, os adjetivos ou os advérbios, por exemplo, repetições ou reiterações, cortar vírgulas ou travessões — escrever bem é encontrar a pulsação do personagem, a pulsação da cena e a pulsação do leitor. Daí por que escrever bem é uma coisa, e escrever ficção é outra bem diferente. Vamos observar, por exemplo, essa aparente repetição:

que ela vira à mesa do jantar e depois ao piano… disse quando o viu vir do piano…

A frase obedece à pulsação e não às regras de bom texto, limpo e exato, que não admitiria a repetição. Imagina se ele colocar: “do instrumento”? A pulsação sofreria um corte inadequado para esta situação. Na primeira frase, o pulso ainda era de uma admiradora — “estava longe de supor”. Por isso é interrompida pelo perfil físico de Pestana que aí serve também para congelar o texto, e chamar a atenção do leitor, num milésimo de segundo, pedindo a sua participação. Quando o texto retorna à cena principal, a pulsação já é outra, a de alguém decepcionada com o perfil físico sugerindo, por isso mesmo, a aliteração “viu vir”, num ruído, num barulho, que revelam bem o pulso de Sinhazinha Mota.

A aliteração passa a ter, neste parágrafo, uma importância básica para a técnica da pulsação. Logo em seguida, observa, a pulsação passa também para a outra moça, provocando uma nova aliteração: “Tantas e tais”, algo que lembra o moderno fluxo da consciência. E, mais adiante, o nível também de decepção e irritação do próprio Pestana: “Sair e saiu”. O que se repetirá, em seguida, no parágrafo seguinte, com a expressão “viu vir dois homens”.

A respeito das repetições, veremos ainda, um pouco mais adiante, como o narrador destaca a angústia a Pestana numa única palavra:

Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear.

Depois:

Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I.

A palavra é reiterativa e segue a pulsação de Pestana. Cansado e deprimido. Mas seguindo os caminhos de Machado.

SURPRESA, O LEITOR CHEGOU PARA O JANTAR

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A surpresa não é mais aquela. Que é que faz com ela? Ou, o que foi feito dela, então? Esquece, vamos direto ao assunto. A surpresa passou a ocupar um elemento secundário, ou quase secundário, na literatura de ficção, desde que o romance, por exemplo, encontrou um lugar específico e privilegiado no campo da obra de arte, a partir de Flaubert. Porque não há dúvida: o escritor francês dividiu muito bem a missão ficcional. Até Madame Bovary, digamos, era apenas um lugar de diversão, de leitura emocional, de mágica, de estudos, para arrepiar e chorar. E só.

Transformada em objeto de amor intelectual, mesmo que Madame Bovary tenha sido uma leitura popular, a surpresa, quem diria?, viveu para a glória do texto, da arquitetura da palavra, para as sutilezas narrativas. Escondida no antienredo, no anti-suspense. Isso quer dizer que passava quase despercebida, sem necessidade daquele arranque estrutural que sacudia o leitor para territórios nunca dantes navegados. Tem mais a ver com mágica sutil, do que com coelhos arrancados de cartola, com orelhas, rabos e tudo.

Mas não foi completamente dispensada. O escritor sempre percebeu que precisa trazer o leitor para junto da emoção nervosa, digamos. É preciso a distinção porque há a emoção estética. Sem dúvida. Depois de Flaubert, porém, viveram as vanguardas, os experimentalismos, os desconstrutores, todos e os demais. A surpresa passou a fazer parte do jogo das palavras, da montagem das frases, das seqüências narrativas. Então, numa palavra: na obra de arte de ficção há duas emoções:

a) Emoção nervosa, cujo principal valor está no enredo;

b) Emoção estética, que considera a montagem estrutural da obra.

Guimarães Rosa, por exemplo alcançou resultados espetaculares. Como naquela frase construída através de crases e verbos para mostrar a ansiedade e a tensão de Dão-Lalalão, e a surpresa de não encontrar amantes de Soropita. O leitor, portanto, deve estar preparado para a estrutura frasal e não para o corte narrativo, que caracteriza a surpresa convencional.

É assim:

Chegava a casa, abriu a porteira, chegava à casa, subiu o terraço, chegou em casa.

Podemos observar, assim, que há, no interior da frase, no andamento, na montagem, uma sensação de expectativa, de medo, de inquietação, sem que essas palavras apareçam em lugar algum. O personagem avança, e avança, está chegando em casa, a surpresa — mesmo a que ele já espera — pode acontecer, mas nada é dito diretamente. É narrada com sutileza, não se mostra, não se apresenta. Não diz. Cabe ao leitor senti-la. E é muito. É demais. É tudo o que o escritor espera, como quem vai tirar um fantasma da cartola. Está aí a diferença entre a surpresa, digamos, nervosa, que sacode o leitor, e a surpresa estética e sutil, fruto do jogo de palavras, de sentimentos, de expectativas.

Em A arte da ficção (tradução de Guilherme da Silva Braga, L&PM), David Lodge traça uma poética da surpresa muito esclarecedora:

Como em um show pirotécnico, um pavio vai queimando aos poucos e, por fim, desencadeia uma seqüência de explosões espetaculares. O leitor precisa receber informações suficientes para que a surpresa seja convincente quando revelada, mas não o bastante a ponto de conseguir prever o que virá a seguir. Thacheray sonega informação, mas sem trapacear.

Não é bom isso? Fica bem claro e explica tanto o exemplo sutil de Guimarães, no específico campo da linguagem, quanto no plano do espetacular, capaz de provocar a inquietação do leitor. A tristeza ou a alegria. A euforia ou o azedume.

De minha parte, sempre gostei de surpresas, desde que elas viessem no interior do texto, exigindo o máximo do leitor, atenção redobrada na movimentação dos personagens, o que faço, com clareza, em As sementes do sol. Davino, o pai, acompanha, envolvido em sutilezas, a cena em que Agamenon, por assim dizer, desvirgina Mariana, filha de Davino e irmã de Agamenon, e não pode fazer nada, até a cena em O amor não tem bons sentimentos, em que Matheus imita o suicídio do pai, ou suposto pai, Ernesto. O cuidado todo é este: não trapacear. Nunca trapacear. Fazer o leitor acreditar, sinceramente, no que está acontecendo.

É assim:

Um menino vestido de velho, chapéu e guarda-chuva, terno escuro e gravata antiga. Compreendi a gargalhada do homem, fiquei com raiva. Tive vontade de voltar gritando eu sou meu pai, filho da puta, você não está vendo que sou meu pai?, vim buscar meu filho que anda abandonado pelo mundo. Triturava a raiva nos dentes — e com piedade de mim mesmo. Calça coronha, subi as escadas e parei diante do espelho, eu mesmo morrendo de rir, o paletó quase estourava nos ombros e o chapéu não entrava na testa. O cabo do guarda-chuva repousava no pulso. Ia tirar a roupa quando decidi viver a loucura do meu pai. Coisa esquisita ter pai.

Nunca pensei que fosse possível ter pai e mãe.

Sentei-me na cadeira de balanço do terraço. A noite vencia o cansaço da tarde. E o meu cansaço — há tão pouco tempo ali e já exausto. Coloquei o guarda-chuva no céu da boca, uma arma. Imitei o exato gesto do polegar apertado o gatilho. Foi um susto. A explosão do tiro jogou minha cabeça para trás, bateu forte no espaldar da madeira. Dor, muita dor, parece que subi uns cinco centímetros do assento, o gosto de sangue esvaia-se na boca. Ri — esse pequeno riso de comoção e medo. O que me deixou preocupado foi a sensação da morte chegando pelas minhas mãos. Ou pelo meu dedo no gatilho.

O texto todo procura levar o leitor a viver a emoção de Matheus, sentindo, surpreendentemente, a dor de um tiro que, na verdade, não existe. E, ainda assim, sem trapacear. Vivendo a carga de sentimentos do personagem, sozinho num sobrado recifense, com muitos quartos, portas e janelas.

No entanto, é preciso ressaltar que o romance moderno, por isso mesmo, tanto pode conviver com as questões puras de surpresa, para provocar sempre o leitor, como é possível tê-la escondida na tensão narrativa, a exemplo do que é feito por Guimarães Rosa. Lembro, também, que no início de A feira das vaidades, de Thacheray, há uma cena de surpresa quando uma aluna, rejeitada durante o curso, joga um dicionário nos pés da professora. É claro, uma surpresa simples e não previsível, mas no caminho da aprendizagem, é essencial. Mas não se pode esquecer os exercícios. Sempre: exercícios, exercícios, exercícios. Escrevendo e apagando. É sempre bom fazer exercícios, mesmo que os despreze depois. Não importa, literatura é trabalho sempre. Incansável.

Clarice Lispector consegue dar um toque de pavor e fragilidade à surpresa em Perdoando Deus, de um modo inusitado e inquietante. É assim que ela escreve:

Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem qualquer prepotência ou glória, sem o menos senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe… E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo, eu estava eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito.

É aconselhável voltar ao livro Legião estrangeira, ler e reler. Leitura sempre é muito. E se surpreender a cada nova leitura. Como se fosse a única e a múltipla. Leitura de escritor — ou de aprendiz de escritor — passa por três estágios.

a) Leitura somente com os olhos, irresponsavelmente;

b) Leitura contemplativa e de olhos fechados, como quem traz as palavras para o sangue;

c) Leitura com a mente, técnica, procurando descobrir as artimanhas e as armadilhas do escritor.

E o grande escritor precisa surpreender o leitor mesmo nas releituras. Vejam que Clarice preparou a surpresa tornando-se carinhosa e, de certa forma, divina, por assim dizer. Criou um efeito de ternura e afeto, para só depois levar o terrível ao leitor. É sempre assim? Não, o escritor deve ter liberdade para criar as suas próprias técnicas. Sempre. Técnica não é camisa de força. É matéria de estudo.

Mas não esqueça de ler poemas. Um prosador lê sempre os grandes poemas. Porque eles são surpreendentes. Com certeza.

VOCÊ COLOCA QUALQUER NOME NO SEU FILHO?

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Claro que não. Nem mesmo o filho da outra. Pode ser da outra, mas é seu, e está acima do bem e do mal. Título de livro é assim: não importa a origem, tem que ser bom. Se possível, ótimo. É um dos elementos decisivos da obra literária. Mesmo quando soa estranho, a exemplo de No Urubuquaquá, no Pinhém, de Guimarães Rosa.

E livro é mesmo uma espécie de filho que vai viver solto na pradaria. Não pode falhar. É astuto, tem coragem, e seduz. Mas não precisa ser Don Juan. Nem mesmo O belo Antônio, que as complicações são muitas. E demais. Portanto, deve ser extremamente sério — mesmo quando irônico ou cômico, tão sério quanto o nome de um personagem ou de uma região. Por exemplo, Macondo, de Gabriel García Márquez, ou Yoknapatawpha, de Faulkner. No meu caso, criei a região geográfica Arcassanta, que pode ser uma fazenda, um povoado, uma cidade, ou apenas um simples lugar deslocado do mapa, à beira da estrada, de um rio, de um açude. Érico Veríssimo inventou Antares. Outros autores preferem nomear os lugares pelo nome que receberam na tradição. De minha, porém, prefiro ter mais liberdade. Minha região começou com Santo Antônio do Salgueiro, pode ser simplesmente Salgueiro, e evoluiu para Arcassanta, porque não sou retratista, sou intérprete.

Portanto, se há tanto cuidado com nomes de regiões e de personagens, então é fundamental que seja assim também com os títulos. Há, porém, um dado importante: o título deve surgir a partir através de dois caminhos:

1) Pelas epígrafes, conforme a temática ou a reflexão.

2) Pelos pontos de vista. Ou do ponto de vista, segundo decisão do autor. Mas não existe apenas um ponto de vista numa obra. De forma alguma. Encontra-se o título em epígrafes e pontos de vista.

A) Pontos de vista:

Na técnica, são muitos os pontos de vistas divididos em, pelo menos, três:

1) Ponto de vista do autor, que coordena todos os demais.

2) Ponto de vista do narrador, que pode ou não coincidir com o autor.

3) Ponto de vista do personagem ou dos personagens.

Sempre destacando que, no nosso caso, ponto de vista é a idéia ou a ideologia do autor, do narrador ou do personagem, no sentido amplo, e não foco narrativo, que é a técnica que o autor escolhe, através do seu narrador ou do personagem. Não esquecer nunca que A hora da estrela, de Clarice Lispector, tem quatorze títulos, mas só um aparece na capa do livro, e mais: logo no começo do texto, ela explica, através do narrador Rodrigo, quais as razões de tantos títulos. Mostra, por exemplo, que um título pode ter dois pontos no princípio e no fim para causar maior impressão ao leitor, ou usar palavras soltas que facilitem a compreensão. Mas opta por A hora da estrela que, embora ambíguo, aponta para o brilho ofuscado de Macabéa.

Mas para efeito de classificação, podemos distinguir três situações para escrever títulos:

1) No caso do ponto de vista do autor, um exemplo clássico é Crime e castigo, de Dostoievski. Isto é, o título representa a ideologia do autor e já registra a opinião que ele tem sobre o assunto. Está sob o domínio dele. Todos os outros assuntos são resultantes do primeiro. Ou, ainda, Um coração simples, que interpreta o autor, a opinião de Flaubert sobre Felicidade, que vem de Madame Bovary.

2) A pedra do Reino, de Ariano Suassuna, é um título cultural, mas sob o ponto de vista do narrador Quaderna.

3) Dom Quixote, Madame Bovary e Anna Kariênina, por exemplo, são títulos tipos de ponto de vista do personagem, porque toda narrativa estará sempre sobre o seu comando. Revela um enorme e decisivo “Eu”.

B) Epígrafes:

Numa outra categoria, essa idéia ou ideologia vem também assinalada numa epígrafe, quando o autor deseja esclarecer, de logo, o mistério do texto, ampliá-lo ou provocá-lo. O nome da rosa, de Umberto Eco, não tem uma epígrafe, mas é, por assim dizer, antecedido de uma abertura em itálico, seguida de uma nota, onde são oferecidas informações decisivas para o leitor. No entanto, o breve texto Pós-Escrito a O Nome da Rosa tem uma epígrafe, que pode esclarecer o próprio romance, a partir de uma estrofe de Santa Joana Inês de La Cruz:

Rosa que al prado, encarnada,

Te ostentas presuntuosa

De grana y carmín boñada:

Campo lozana y gustosa;

Pero no, que siendo hermosa

También será desdichada.

Assim, ela pode servir de chave interpretativa tanto do pós-escrito quanto do próprio livro, de forma a decifrar caminhos insondáveis. Claro que cada leitor faz sua própria interpretação, seguindo os caminhos indicados por Santa Joana ou não. Cada um conhece as suas próprias estradas. Diz o verso que o caminheiro é quem faz o caminhar. Mas não deixa de ser motivo de estudo. Sobretudo da realização de um título. De minha parte, por exemplo, sempre achei que Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, representa a morte e a ressurreição de Jesus Cristo, sendo um auto natalino. Mas essa é a minha interpretação. Pode não ser nem mesmo a do poeta, a do leitor, ou a do exegeta.

De minha parte, porém, gosto de usar epígrafes como chaves interpretativas, que provocam o título. Em Somos pedras que se consomem sou muito breve e uso uma frase de John Fante: “Cada palavra deste livro é pura verdade”. Por quê? Porque o romance é resultado de uma pesquisa em revistas e jornais brasileiros onde registro todos os fatos reais, embora ficcionados e seguindo a cronologia que me interessava, a respeito da crescente violência brasileira contra mulheres e crianças. No corpo do texto, várias citações são lembradas, numa recorrência a outras vozes para compor o meu tecido narrativo.

Em Sombra severa, porém, é diferente. Em princípio, a novela se chamaria “Memorial de Judas”, um conto que eu havia escrito na praia do Janga, na cidade do Paulista, bem próxima do Recife. Depois que o transformei numa novela, achei que devia ser seco e indireto. Então encontrei-o num poema de Carlos Drummond de Andrade, aquele em que ele conta como andava com o pai pelas ruas de Itabira, Minas Gerais.

Para interpretar, porém, a história e os personagens, optei por três epígrafes, ou seja, três pontos de vista, que me vieram de Henry Miller e Mario Arregui, além da última, de Shakespeare, que fecha a compreensão da novela. Noutra página, recorri a Thomas Mann, que, na verdade, oferece a chave de todo o texto. Para definir a sombra severa recorri ao ponto de vista dos personagens Judas e Abel, e mais adiante convoco Shakespeare para representar o ponto de vista do autor, esclarecendo Dina e, em conseqüência, Abel.

Judas:

Dá-lhe um nome feio: traição. Mas é justamente essa índole traiçoeira do rebelde que o diferencia do resto do rebanho. É sempre traiçoeiro e sacrílego, se não literalmente pelo menos em espírito. Comporta-se, no fundo, como um traidor porque tem medo de sua própria humanidade, que o aproximaria de seu semelhante.

Henry Miller

Abel:

Muitas coisas foram ditas, repito, mas não houve quem fosse capaz de formular sequer uma aproximação daquela frase antiqüíssima (nascida na costa ocidental do Mar Egeu há vinte e cinco séculos) que asseverava que ninguém fica tão unido a ninguém como o homicida da sua vítima.

Mario Arregui

Deixa-me saber por que teus ossos abençoados, sepultos na morte, rasgaram assim a mortalha em que estavam? Por que teu sepulcro, no qual te vimos quietamente depositado, abriu suas pesadas mandíbulas marmóreas para jogar-te novamente para fora.

Shakespeare

Observe-se, assim, que as epígrafes são importantes para a decifração do título, algo que tortura e alegra o autor. Estão sempre juntas, unidas, inquietas. Sem esquecer, por exemplo, que Moby Dick, de Melville, tem mais de vinte epígrafes a respeito de cachalotes, e em A pedra do reino, de Ariano Suassuna, chegam a oito a dez. E ainda mais: Hermilo Borba Filho, em Um cavaleiro da segunda decadência, usa epígrafes nas aberturas de cada capítulo, o que, de certa forma, substitui os títulos. São caminhos e indicativos dos escritores para desenvolver a técnica narrativa. Hermilo, aliás, conhecia muito bem a eficiência das epígrafes.

Na verdade, ultimamente os críticos passaram ou a desdenhar das epígrafes ou a não lê-las. Algo totalmente equivocado. Significa profunda desatenção com o autor e, mais ainda, com o livro. Um romance bem elaborado não começa no primeiro capítulo mas na capa, junto com o título. E um título, além de um indicativo de leitura, é, sobretudo, a chave para toda a compreensão da obra. E, em conseqüência, do pensamento do autor, da sua ideologia, da sua confrontação com o mundo.

Cuidado com os títulos. Sempre cuidado. Um título mal cuidado pode prejudicar uma obra-prima. Porque há também títulos que podem indicar a temática, mas não participar da intimidade da obra. Que tal Doutor Fausto, de Thomas Mann? Um leitor desavisado não vai encontrar nenhum Doutor Fausto no livro. E Dom Casmurro? Desde o primeiro capítulo que Machado de Assis avisa: não há nenhum Dom Casmurro no livro. É certo. Afirma, com a maior clareza, absoluta clareza, que o título é uma homenagem a um poeta que o interpelou no trem. E só. O leitor é que pensa estar lendo a história de Dom Casmurro. Só uma provocação: Dom Casmurro é um dos narradores do livro — o narrador onisciente —, o outro é Bentinho — o narrador oculto. Mas Bentinho está ali, presente, no livro todo. Não é? Silvia, de Gerard de Nerval, não conta a história de Silvia; conta a história de Adriana.

É assim.

PONTO DE VISTA NÃO É SOMENTE CIÚME DE VOCÊ

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Não resta dúvida que o ciúme é um dos temas mais trabalhados pelos escritores, em romances, novelas e contos. Basta observar, por exemplo, a obra de Graciliano Ramos — o assunto está nos romances Caetés, Angústia e São Bernardo. Machado de Assis ergueu um monumento ao ciúme em Dom Casmurro. Sem esquecer os casos clássicos de Madame Bovary, de Flaubert, e de Ana Karenina, de Tolstoi. Além de Eça de Queiroz, em Os Maias, sobretudo. E mais: O ciúme, de Alain Robbe-Grillet. Ciúme para vender em balaio. Na praça, no bar, no escurinho do cinema.

Mas não é apenas dele que pretendemos tratar aqui. Vai mais além, muito mais além. Especificamente, abordaremos o ponto de vista do escritor, a raiz e o centro de toda a preocupação intelectual, antes mesmo da técnica, que continua auxiliar. Ponto de vista é a visão que o romancista tem do mundo, a maneira como interpreta a condição humana, o modo de refletir. Portanto, o ciúme é um desses elementos. Um dos mais graves, concordamos, porque projeta toda uma série de incidentes. Mas, é claro, não é o único. É parte da visão do escritor. Lembrando Massaud Moisés, em Dicionário de termos literários:

Porventura a mais estudada, porque a mais relevante, das categorias narrativas, o ponto de vista, além de condicionar a avaliação de um romance, articula-se estreitamente com o modo como o autor ou/e o narrador vê as coisas e o mundo: em grande parte, a cosmovisão de um escritor se manifesta por meio do ponto de vista, sobretudo na medida em que o ângulo visual determina, deforma ou informa, tudo o mais que se contém num texto narrativo. Exprime, assim, não só uma opção estética como também, e notadamente, ética: a obra literária dos últimos fins do ser humano evidencia-se na escolha do foco narrativo; conforme sejam vastas ou estreitas as condições éticas dum autor, assim será o ponto de vista empregado nas suas obras.

Vamos aos casos clássicos de Flaubert e de Tolstoi. Ambos tratam do adultério, embora não haja ciúmes no exemplo clássico do escritor francês. Charles Bovary não sente ciúme nem mesmo quando descobre as cartas escritas por Ema aos amantes: Rodolfo e Léon. Em Tolstoi, o ciúme aflora com intensidade. Sim, mas embora os temas sejam os mesmos, o ponto de vista de um e do outro difere, completamente. Senão vejamos: ambos vêem o assunto de maneira bem diferente. Flaubert cuida da técnica, da estrutura interna da obra, e do medo da morte; Tolstoi examina a questão moral e, um pouco mais adiante, a religião. Dois grandes livros, dois tratamento desiguais.

Sempre lembrando que o ciúme é uma parte, até mesmo uma parte importante, do ponto de vista do leitor, mas reflete apenas uma particularidade.

No entanto, apesar de toda técnica e de todo discurso, ambos se unem no plano moral: as heroínas, Ema Bovary e Anna Karenina, são julgadas e condenadas. Suicidam-se. O que representa o ponto de vista dos autores, embora tão distintos e diferentes na montagem da obra. Em Madame Bovary há uma grande dor e um grande desespero, com a morte causada por veneno, uma morte que ocupa mais de uma página, cheia de barulhos, cânticos, arrependimentos metafóricos, choros, lamentações. Em Ana Karenina há uma espécie de alívio: moral e técnico; a personagem parece sair de um banho no instante em que se atira nas rodas de ferro do trem. Vejam o que escreve Tolstoi no momento exato do suicídio:

Um sentimento toma conta dela, semelhante àquele de quando, ao tomar um banho, se preparava para um mergulho na água…Colocou a cabeça entre os ombros e, com as mãos à frente, atirou-se embaixo do vagão.

A punição pelo alívio. Temas iguais para pontos de vista diferentes a respeito da morte.

Há, no entanto, uma grande confusão quando se trata das técnicas na obra de arte romanesca. Alguns estudiosos e críticos consideram que ponto de vista e foco narrativo são iguais, daí as expressões usadas por Massaud Moisés. No nosso entendimento, porém, ponto de vista é, como já dissemos, a visão de mundo do autor, a leitura do mundo, que pode ser filosófica, política ou religiosa, e o foco da narrativa é a técnica que o autor usa para manifestar sua interpretação. Por isso, recorre a tantos personagens, a tantas histórias contraditórias entre si.

Quando escrevi Viagem no ventre da baleia, que examina a questão do campo, precisei, por isso mesmo, de três personagens que pudessem, juntos, refletir a minha angústia sobre o tema, mesmo através de um narrador inominado. Recorri a três personagens antagônicos: Padre Paulo, Jonas e Miguel. O primeiro procura equilibrar o mundo atribulado de Jonas e de Miguel, enquanto o segundo compreende que as questões universais são resolvidas através das armas, enquanto o terceiro acredita que a solução dos conflitos está no enfrentamento, embora de moído pacífico. Os três juntos revelam o meu ponto de vista e minha leitura do conflito. O mesmo fiz com Félix Gurgel, de A dupla face do baralho, com o personagem se debatendo entre a tortura e o amor.

Mais adiante, pode-se verificar o caso de Alain Robbe-Grillet, ou seja, o ponto de vista que aniquila o humano, não destacado, por exemplo, em O ciúme. Ali ele expõe seu ponto de vista existencial: “O mundo não é nem significativo nem absurdo. Ele é, simplesmente”. Aliás, na apresentação do livro na edição do Círculo do Livro, anota-se:

Sua obra é notável principalmente pelo cuidado com que são eliminadas da narrativa as indicações que poderiam conduzir o romance a um resultado psicológico muito evidente. Robbe-Grillet aparentemente contenta-se em justapor descrições objetivas que traçam, pouco a pouco, diante do leitor, quadros concisos. As fisionomias os gestos que animam esses quadros parecem igualmente observados pelo autor de maneira fria, sem que lhes dê um significado mais amplo. Assim, aparentemente, todo o romance forma um único jogo de cenas. Graças a essa técnica, o escritor pretende sugerir a solidão metafísica de suas personagens.

Percebemos, portanto, que a principal característica do autor é esse ponto de vista. O que acontece, então, é que a partir desse ponto de vista chega-se ao foco narrativo, que indica o caminho das técnicas. Os escritores que não sabem ter um ponto de vista e alcançam o foco narrativo de qualquer maneira podem ser bons, sem dúvida, mas correm o risco de repetir sem graça o que os outros já disseram. Ou escreveram. Dessa maneira, devemos estabelecer o seguinte: sem um foco narrativo, alimentado, pelo ponto de vista, o caminho do fracasso é linear: não tem errada. Mas se o escritor é capaz de, através de estudos sistemáticos, formar um ponto de vista, e escolhe as técnicas que melhor se ajustam ao que pretende dizer está, sim, percorrendo o caminho do êxito.

Nesse sentido, esses são os revolucionários, os que mudam o destino da literatura. Escrever bem não é, absoluto, apenas uma maneira de unir belas palavras. A linguagem escrita é um dos elementos da narrativa. Um dos mais importantes. Não há nenhuma dúvida disso. Mas os outros elementos não podem ser desprezados. Até porque para unir boas palavras, ajustáveis, é preciso saber para que elas servem. Não custa observar. Revolucionários e conservadores sabem disso.

O fundamental, porém, é que o escritor deve ter o que dizer, inicialmente, e não revelar isso no desenvolvimento da narrativa. Muito menos no discurso escrito. O desenvolvimento dos personagens, das cenas, dos cenários, dos diálogos, por exemplo, revelam o pensamento do autor, o seu ponto de vista, e não as palavras. Ou antes, não só as palavras.

CAOS É AQUILO QUE A GENTE NÃO ENTENDE

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A confusão é geral. Ninguém se entende. Solilóquio passa por monólogo, monólogo vira fluxo da consciência, fluxo da consciência se perde num emaranhado de definições, indefinições, buscas e encontros, tudo isso formando um universo de certezas e convicções, de equívocos, de risos e trapalhadas, e, o que é justo, todo mundo tem razão. Cada qual com seu cada qual. Num mundo de pós-modernidade, é o que dizem e asseguram, a verdade — sem discussão filosófica — não é terreno privado de ninguém. Por isso mesmo vale um debate de letrinhas. Dois pra lá, dois pra cá, vai começar a festa. De caos em caos, a literatura enche as páginas.

É comum encontrar pessoas chamando de monólogo o famoso solilóquio do “ser ou não ser, eis a questão” do Hamlet, de Shakespeare. Não pode ser — ali há um solilóquio, e o solilóquio é matéria do teatro, nasceu com o teatro, vive com o teatro. Brilha no palco. Ou no cinema. Solilóquio é uma conversa íntima e interna de personagem para personagem, dele para ele, pedindo ouvido e colo, dirigido à platéia. Uma conversa para o horror da alma mesmo e com a esperança de que alguém o escute. Isso é fundamental. É básico. Assim, sem tirar nem pôr: sem ouvido não há solilóquio. Por isso deve ser lógico, coordenado, organizado. Pode estar no romance, na novela, no conto. Como técnica, sim. Hamlet:

Ser ou não ser — eis a questão.

Será mais nobre sofrer na alma

Pedradas e flechadas do destino feroz

Ou pegar em armas contra o mar de angústias —

E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir;

Só isso.

Se alguém gosta de monólogo, às vezes, monólogo interior, então tudo bem. Chame-o como quiser. Tratando-se, portanto, de uma técnica, não deve ser lei nem regra. Mas se for possível consultar uma gramática que tem área para a estilística, pode-se observar com clareza: solilóquio é diferente de monólogo. E bem diferente. Só mais uma coisa: no solilóquio o personagem está sob o domínio do narrador, feito ventríloquo. No monólogo o personagem tem liberdade. Está livre de tutela ou de comando. Fica só, sozinho, somente. É tresloucado.

O monólogo é completamente diferente do solilóquio, pois sim. É típico da prosa de ficção. Sabe por quê? Porque não exige o ouvido, não pede o testemunho de ninguém. E como não pede ouvido nem o testemunho de ninguém não precisa ser organizado, coordenado, lógico. Precisa de olhos, feito namoro e paixão. E, é claro, de mentes. Basta uma olhada no Ulisses, de Joyce. E, brasileiramente, do monólogo de Autran Dourado, em A barca dos homens. É fácil perceber que o pensamento do personagem não segue nenhuma direção lógica. Desaparece, muda de rumo, some. Faz caminhos nunca dantes navegados, com a licença de Camões.

Um exemplo de monólogo, em Ulisses:

E um desses espartilhos ajustadinhos eu queria anunciados como baratos na Fidalga com nesgas elásticas nas ancas ele endireitou o que eu tenho mas não é bom que é que eles dizem eles fazem uma deliciosa silhueta.

E o fluxo da consciência? Aí, camarada, a porca torce o rabo, a vaca tosse e arara canta. Tudo trancado num quarto escuro, apertado e sem janelas. O solilóquio é lógico? Sim. O monólogo é ilógico? Sim. E o fluxo da consciência é o quê? Não é também ilógico? Sim, mas tem um passo adiante, é só enfiar os olhos no papel. O narrador precisa encontrar o inconsciente do personagem e expressar os pensamentos, a mente desorganizada e revelar barulhos, confusões, lembranças, memórias, tudo numa rapidez impressionante, sem atropelos mas com estrutura inimitável. A ilógica do monólogo é pouco, precisa ir até às aliterações, às rimas, ao jogo interno das palavras inteiras, cortadas, unidas, desfalcadas. É inimitável, também segundo Autran Dourado, que é exigente:

O que é importante no stream-of-consciousness de Finnegans Wake é a sua mudança de ritmo. As elipses, os lapsos, as aliterações, são o que fazem da obra final de Joyce uma obra maior do nosso tempo… Confundi-lo com estilo indireto livre ou o solilóquio é um erro de conseqüências fatais para quem o pratica.

E com o monólogo também. O exame continua com este exemplo de Joyce, tão diferente do monólogo. Vejam bem:

Salamangra! Ai, ai, ai! Cheridas gênias, figatrifutrem-se! Ri eu, ri Ana. Wallenton. Essa foi a primeira putada de Wellenton, taco a taco. Hi! Hi! Hi! Este sou eu, Belchum com suas borrachosas de doze éguas chuá, chuá, chuá…

Há também autores que procuram o fluxo da consciência a partir do monólogo. É claro: todo monólogo leva ao fluxo, mas nem todos sabem disso. Não é um desinformado; apenas não se preocupou com isso e tem toda razão: ficção é um ato individual e o autor pode ou não se tornar senhor de sua criação, sem qualquer conhecimento técnico. Outros conhecem o terreno em que pisam. Basta ver o caso do paraibano Rinaldo de Fernandes, em Rita no pomar, um romance e tanto. Ali o monólogo vai pouco a pouco cedendo espaço ao fluxo, porque a confusão mental procura a rapidez e, na rapidez, encontram-se os barulhos, os ruídos, as aliterações já assinaladas.

O que há, ainda, é uma pequena confusão: há o fluxo da consciência na psicanálise, amplamente usado na literatura. Tudo bem. É um direito do escritor e um direito do crítico. Pode e deve ser usado. Mas em se tratando de literatura, deve-se usar a técnica criada e desenvolvida por Joyce. Costumo mesmo dizer, e até por brincadeira aos meus alunos da Oficina de Criação Literária que tudo pode e nada pode, depende de quem escreve. O que é correto é que a literatura precisa celebrar as suas conquistas e ir adiante com elas. Sem censurar qualquer pessoa, no entanto. Como já disse, no outro parágrafo, Rinaldo usa um fluxo da consciência excelente, que é tratado como monólogo. São coisas bem diferentes. Começa monólogo, é verdade, mas quando o autor paraibano usa as aliterações e as rimas, por exemplo, sai de um campo para outro, e avança. Avança muito. Numa técnica bem pouco explorada e, segundo Autran Dourado, inimitável. Rinaldo não imita. Cria a sua própria técnica, usando os elementos próprios da técnica em debate.

Sem esquecer, ainda, que o fluxo começa a nascer com o discurso — diálogo — indireto livre, criado e também usado por Flaubert, porque esse tipo de técnica representa mesmo uma espécie de conversa entre o narrador e o personagem, sem qualquer sinal de intervenção, além da mudança do tempo verbal. Exemplo:

Maria não vai ao cinema, porque não quer sair com o namorado.

É só prestar atenção. O narrador diz: “Maria não vai ao cinema”, mas é a própria Maria quem afirma “porque não quer sair com o namorado”. A mudança do tempo verbal é bem clara: “não quer”, ao invés de “não quero”. Se deixar “quero”, transforma-se em diálogo indireto, com muita clareza. Por quê? Porque a voz de Maria fica muito clara, muito objetiva, e não esconde, porque assim dizer, a resposta da personagem. Depois desse discurso indireto livre, vem a criação do monólogo, que não começa com Joyce, mas com Eduard Djardin, escritor francês do século 19, e muito pouco publicado no Brasil. Há edições esparsas aqui e ali. Joyce percebeu o caminho, aprofundou o monólogo e voou para mais distante ainda criando o fluxo da consciência. O solilóquio, porém, é mais antigo, bem mais antigo, e foi mais usado por Shakespeare, sobretudo naquele exemplo já citado. Um caminho objetivo: Solilóquio, discurso indireto livre, monólogo e fluxo da consciência. Mario Vargas Llosa avançou com os monólogos entrecruzados, o que também é uma novidade, a partir de A casa verde e chegando à sua sofisticação em Conversa na catedral, que entrecruza várias narrativas e usa esses monólogos entrecruzados.

Esses são os caminhos que devemos ou não percorrer. Uma questão de preferência ou de liberdade. Pura liberdade para quem quer criar asas. Cada um entende à sua maneira. E cada um tem razão. No campo criativo não há verdades absolutas. Ou permanece a pergunta: Caos é aquilo que a gente não entende? Não custa ouvir, mais uma vez, Autran Dourado: “Na verdade, confesso humildemente, não consigo entender”. Está aberta a temporada de debates. Para nossa sorte.

A OBRA É MINHA NINGUÉM TASCA EU VI PRIMEIRO

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Todas as coisas se amam, e as artes também. Aliás, todas as coisas se amam é o título de um ótimo livro do padre Ernesto Cardenal, um dos militantes que promoveram a revolução na Nicarágua, no tempo em que padres faziam revolução. E com amor e com a cruz. Mas não é de revolução popular que vou escrever. Me desculpem — de revolução sim, e da mais radical de todas as revoluções: aquela que envolve os fenômenos literários.

No amor das artes, eles se acarinham e se devoram, se destroem e se revelam. Alimentam-se das próprias dores e das próprias agonias. Tornam-se inquietas e participam da construção do Belo. Isso mesmo. E, sendo assim, não é esquisito que o romance moderno — aquele que nasce com Dom Quixote e que é chamado de romance burguês — tenha se alimentado, por exemplo, das seivas do teatro — ou da epopéia —, para definir mais tarde os seus caminhos.

Vieram, então, nas páginas da ficção em prosa, os diálogos tradicionais, marcados por dois pontos e travessões, além das marcações — que também é coisa do teatro, e do teatro mais antigo, que hoje não se usam mais. Os autores e narradores preferiram aboli-los, em muitos casos. Basta agora lembrar com rapidez, sem muita reflexão. Como é o diálogo tradicional? Assim:

— Você vai ao cinema? — Perguntou ele.

Ela respondeu:

— Se você me acompanhar.

Estão aí os elementos do diálogo tradicional: depois de “assim”, dois pontos, que abrem a possibilidade do diálogo, através da voz externa do personagem masculino, com um travessão, o breve sinal que aparece antes de “você”. Em seguida surge a voz do personagem: “— Você vai ao cinema?”. E agora, depois de um novo travessão, a marcação, ou seja, a identificação de quem fala: “Perguntou ele”. Vendo bem, além do diálogo, o romance herdou aí a marcação. Só uma lembrança: a marcação no teatro, que hoje nem existe mais, era feita pelo autor para ser realizada pelo ator, de acordo com o diretor. E era escrita da seguinte maneira: Ator dirige-se à esquerda e pergunta: “Você vai ao cinema?”; “Se você me acompanhar”, responde a atriz, ao lado do ator, rindo com leveza e malícia. Hoje, não é mais escrito assim, porque a responsabilidade da cena é transferida para o diretor.

Na tradição norte-americana, o travessão é substituído pelas aspas, como ocorre, por exemplo, no romance de John Updike, considerado um dos três grandes do século 20, nos Estados Unidos, ao lado de Norman Mailer e Philip Roth, também consagrado pela crítica brasileira. Updike procurou ser o intérprete da vida norte-americana com uma obra marcada pela crítica social e pela criação de personagens representativos dessa área. É assim que ele escreve os diálogos:

Coelho pergunta: “Cadê o menino?”

“Na casa da minha mãe? O carro está coma sua mãe e o menino com a minha. Meu Deus. Você é um fracasso.”

Ela se levanta, a sua gravidez o irrita, aquela voluminosidade teimosa.

Além da marcação — “Coelho pergunta”, “Ela se levanta” — é acrescentado um comentário: “a sua gravidez o irrita, aquela voluminosidade teimosa”. Duas técnicas diferentes, embora com um pequeno avanço. Na primeira: fala mais marcação; na segunda, fala mais a marcação e mais o comentário. E com as novas conquistas da ficção, veremos que algumas soluções são encontradas, distanciando-se do teatro, rebelando-se, avançando. Amando. Amor rebelde, mas amor. Amando-se e devorando-se.

Surge o discurso indireto livre, e aí o romance começa a ganhar autonomia, como queria Gustav Flaubert, o reinventor do romance moderno. Que alguns chamam de estilo indireto livre e que prefiro chamar de diálogo indireto livre. Para Mario Vargas Llosa, essa é maior contribuição de Flaubert ao romance moderno.

O diálogo indireto livre consiste em aproximar tanto o narrador do personagem que o leitor não percebe, em geral, a diferença de vozes. Aqui se evitam, portanto, o travessão, as aspas e, em certos casos, até a marcação. As vozes do narrador e do personagem se confundem, com a retirada dos sinais. Numa única frase, as vozes entrecruzam-se, e dá ao texto uma leveza que deixa o leitor mais à vontade. Vamos tomar o exemplo de Pedro Páramo, romance de Juan Rulfo, que, basicamente, criou as bases do romance latino-americano. Preste atenção:

Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo.

Minha mãe me disse.

Percebeu? Aproxime mais os olhos e a curiosidade, se possível use uma pinça para as frases que vamos isolar. Aparentemente, as frases parecem convencionais, comuns Nada de estranho. Mas com a aproximação dos olhos percebe-se a repetição do verbo dizer, no plural e no singular. Ou não é? Como um escritor de alta qualidade faria isso? Onde andaria a harmonia do texto? Para responder, pegamos logo a pinça e isolamos as frases. “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo.” É certo, portanto, que as pessoas ou desconhecidos “disseram” que ali vivia o pai do personagem, Juan Preciado. Ótimo. É isso mesmo. Na outra frase está dito que foi a mãe quem me “disse”. Afinal, quem disse que ali vivia Pedro Páramo, as pessoas, os desconhecidos ou a mãe? O narrador não sabe de nada? Sabe, e sabe muito. Sabe mais do que nós.

Na primeira frase foram essas pessoas que “disseram” que ali vivia o pai, mas foi somente a mãe, com todo o ódio que guardava no coração que “disse” um “tal de Pedro Páramo”, com rancor. São duas vozes para uma só narrativa. Ou seja, um diálogo indireto livre. De forma indireta, como se tem ressaltado, sem qualquer sinal, aspas ou travessão, e com apenas uma marcação, revelada no verbo “dizer”, o autor possibilita, de maneira subjetiva, que narrador e personagem conversem, ou se manifestem. Numa linha narrativa direta, escrita numa primeira versão, a frase ficaria dessa maneira:

Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, que minha mãe chamava de um tal de Pedro Páramo, com toda a raiva do coração.

Tem coisa mais óbvia e mal-feita? É aí que entra o artesanato, a qualidade essencial do escritor. José Saramago, o português Prêmio Nobel de Literatura, procura um caminho diferente, usa uma variante da técnica, fazendo com que a primeira letra da fala do personagem apareça em maiúsculo, o que facilita a compreensão do texto:

Sete-Sóis soergueu-se na enxerga, e também inquieto, Estás a mangar comigo, ninguém pode olhar por dentro das pessoas, Eu posso, Não acredito…

É possível observar, com clareza, que as palavras “estás”, “eu” e “não” têm a primeira letra no maiúsculo para assinalar a mudança de vozes. E aí sem a necessidade da marcação, ou seja, dos clássicos “disse”, “perguntou”, “respondeu”, “falou”, “acrescentou”, o que, quase sempre, deve ser mesmo evitado, porque o leitor está entendendo muito bem. Dessa forma, a literatura de ficção ganha uma espécie de tecido único, sem interrupções desnecessárias para os olhos do leitor. Em certo sentido, fica mais agradável e atinge — no conto, na novela e no romance — um alto grau de sutileza que pode surpreender o leitor a cada momento, impondo seu encanto e sua sutileza, com a verdadeira qualidade de um sedutor, que é, afinal de contas, o objetivo de toda a arte.

Mas há, ainda, e sobretudo, aquele diálogo indireto livre clássico, que se caracteriza pela mudança do tempo verbal, e que se estuda até mesmo na gramática. Veremos o exemplo de Sérgio Rodrigues, em Elza, a garota:

Terminou de enumerar seus feitos esquivos e explicou que agora tudo estava mudado, era independente, não admitia mais patrão….

Com atenção, percebemos claramente as duas vozes que resultam no diálogo indireto livre. Voz do narrador: “Terminou de enumerar seus feitos e explicou que…” Voz indireta do personagem: “Agora tudo estava mudado, era independente, não admitia mais patrão”. O que aconteceu aí foi a mudança do tempo verbal. Evita-se o presente para usar o pretérito imperfeito. Ou seja, a frase que seria “Agora tudo está mudado, sou independente, não admito padrão”. E pronto. O personagem dialoga com o narrador e o leitor nem sempre percebe. Por quê? Por causa da mudança do tempo verbal. Que até parece intuitiva. Não é. É técnica.

É também por isso que o amor entre criaturas — mesmo que sejam elementos da arte — resulta em fogo devorador. Pouco a pouco, o teatro, que cedeu material para a evolução da arte romanesca, foi perdendo a influência e a ficção se tornava autônoma, a ponto de iluminar sozinha o seu palco. Claro, um escritor pode e deve construir a sua obra como queira. Não estamos falando de regras, mas de técnicas. O romano Horácio pretendeu estabelecer rígidas regras poéticas e não foi feliz. Ninguém manda na mão do criador. Ele continua — e continuará — tendo a absoluta liberdade para estabelecer o próprio caminho, conquistando novas posições, determinado e seguro. O artista estará sempre alerta para defender a sua liberdade e o seu destino de criador em absoluto, protegendo o direito de inventar, pessoal e intransferível, absorvendo os caminhos de outras artes, mas seguro de sua individualidade. Daí por que soa a sua voz de vencedor: “A obra é minha ninguém tasca eu vi primeiro”.
ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
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