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O doce caminho das digressões


vb. criado em 10/06/2013, 16h10m.

René Magritte. Juventude ilustrada. 1937. Clique no link para ver a imagem em tamanho maior:rel://files/youth-illustrated-1937(1).jpg!Large.jpg

O escritor precisa sempre acreditar na única lei que lhe é imposta: nenhuma regra lhe pode ser imposta, nenhum decálogo e, claro, nenhum regulamento. Tenho repetido muito isso, não é? Ocorre que muitos equívocos são lançados sobre as oficinas literárias. É preciso esclarecer. O estudo da técnica torna o artista consciente, e não serve para ser copiado. Mas um romance, por exemplo, pode ter dois caminhos seguros, que favorecem a crítica do próprio trabalho. São eles: digressão e comentário. Pode parecer, no entanto, não são a mesma coisa, não é. Eis a diferença: na digressão, o narrador se afasta do objeto central; no comentário, o mesmo narrador não larga este objeto.

Compreendo que escrever uma digressão não é tarefa fácil. No entanto, percebe-se logo que ela pode e deve ser usada quando for necessário seduzir ainda mais o leitor, sobretudo com relação a enredos ou com relação a mudanças de enredo, ou técnicas ainda mais sofisticadas. Machado de Assis era mestre nesta arte, que aprendeu com Lawrence Sterne e não esqueceu mais. Veja bem o exemplo de Dom Casmurro:
Dá para perceber? Olhando — ou lendo — bem, o objeto central da narrativa é a frase:
Não é verdade? Mas na frase seguinte, o narrador parece esquecer o que afirmou e investe na digressão, afastando-se do objeto central e levando o leitor com ele. Algo feito com muita calma, lentamente.
Uma conversa leve, de narrador experiente que, num rápido momento, desvia o leitor numa conversa desconfiada, até retornar ao objeto central:
Manobra de quem sabe o quer e para aonde vai. Faz uma curva narrativa, distrai o leitor e volta ao começo ainda que por outro caminho. Isto é uma digressão legítima. Sim, para efeito de estudo e de consciência literária, o que é uma digressão? E para que serve?

Sempre assim: no momento em que for preciso distrair o leitor para que ele não acompanhe o rigor do enredo, a digressão precisa ser realizada, da mesma forma que fazemos com as pessoas quando pretendemos surpreendê-las. Para exemplo, vamos recorrer aos meninos, que são mais hábeis no destino narrativo. E refletimos sem gravidade. O menino da história e o menino de Clarice Lispector.

Só uma brincadeira infantil, que ajuda a refletir, sem forçar. Vamos ver:

— Eu quero uma mordida neste doce.

— Não dou.

— Veja como a torre da igreja está brilhando.

— Onde?

— Veja com cuidado.

— Não consigo.

— Ah, você não sabe olhar.

— Ih, cadê meu doce?

— O gato comeu.

O que aconteceu? Enquanto distraímos o amigo, aí está a digressão, o doce foi roubado. Mudança de rumo ou de assunto. Não é mesmo? Certamente o outro vai olhar a torre da igreja — onde, com certeza, não está acontecendo nada — e lhe roubamos o doce. Qual o objeto principal: o doce. Não é assim? E qual é a digressão? A torre da igreja. O exemplo é ingênuo e infantil, concordo. Mas, creio, eficiente.

Assim podemos, então, trabalhar a digressão:

Objeto central:

— Eu quero uma mordida neste doce.

— Não dou.

Digressão:

— Veja como a torre da igreja está brilhando.

— Onde?

— Veja com cuidado.

— Não consigo

— Ah, você não sabe olhar.

Objeto central:

— Ih, cadê meu doce?

— O gato comeu.

Não é mais do que isso. Em princípio, com essa tranqüilidade. É claro que coloquei diálogos, mas se há uma narrativa, então é preciso escrever da seguinte maneira:

O menino queria uma mordida no doce do colega, mas não lhe foi permitido. Ele apontou a torre da igreja chamando a atenção para o brilho que estava surgindo. O colega não viu, embora olhando com muito cuidado. O doce lhe foi roubado pelo gato. Que gato? Difícil era esconder a boca cheia.

Agora o desenvolvimento, mais uma vez:

Objeto central:

O menino queria uma mordida no doce do colega, mas não lhe foi permitido.

Digressão:

Ele apontou a torre da igreja chamando a atenção para o brilho que estava surgindo. O colega não viu, embora olhando com muito cuidado.

Objeto central:

O doce lhe foi roubado pelo gato. Que gato? Difícil era esconder a boca cheia.

Digressão é isso: desvio da atenção pela mudança de rumo ou de assunto, dependendo da função e do efeito.

Veja o que diz Houaiss sobre o assunto: “Desvio do assunto principal ou de rumo”.

EXERCÍCIOS

Em princípio copie, copie mesmo, copie o diálogo. Divida em partes: objeto central, digressão, objeto central. Agora copie, copie mesmo, a narrativa. Divida em partes: objeto central, digressão, objeto central. Isso não é gratuito, é fundamental. Não se entende apenas com a mente, mas com a escrita. Repita. Memorize. Repita. Memorize. Escreva, escreva, escreva.

Vamos a um exercício. As palavras do objeto central são de Clarice Lispector. De propósito, inventei a digressão.
Agora invente a sua digressão, tomando como base o movimento dos carros na outra rua:

Objeto central:

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde.

Digressão: (fazer o exercício)

Objeto central:

Ela depositou o volume no colo e o bonde começou a andar.

Então vamos a outro exercício, com invenção livre na digressão — ou seja, não copie o texto de Clarice mas invente outro:

Objeto central:

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde.

Digressão: (fazer o exercício)

Objeto central:

Ela depositou o volume no colo e o bonde começou a andar.

Estes exercícios são fundamentais. Não adianta apenas dizer: compreendi, entendi — tem que fazer. Se possível, repete e repete e repete. Até considerar o domínio do texto.
ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
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