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Sócrates e Nietzsche in love
Alguns filósofos fazem da filosofia uma grande ego-história. Não se trata de auto-biografia. Ego-história é outra coisa. É uma história do eu, escrita pelo próprio, mas sob uma perspectiva objetiva.
Sendo assim, há filósofos que desenvolvem o seu filosofar como um conto do eu a respeito do eu, ou seja, uma narrativa sobre as próprias transformações pessoais. Talvez todos os filósofos façam isso. Pode ser que os filósofos não consigam fazer outra coisa que não isso. O filósofo americano Wiliam James dizia que toda filosofia não é senão uma forma de expressão do temperamento do filósofo. Se isso é verdade, então, de alguma maneira, os filósofos seguem a máxima socrática “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”. Pois a ego-história é um exame do ego. Não um simples auto-exame, mas um exame que revela a própria expressão das tomadas de partido que o filosofar indica dia após dia. E nas tomadas de partido, deixamo-nos conhecer.
A filosofia é o modo como alguém naturalmente tímido conta coisas a seu próprio respeito de uma maneira sofisticada e, assim, possível de ser dita publicamente. É uma espécie de roupa suja que não se lava em casa, que pode ser lavada em público, dado que o caldo que irá sair dali é adrede preparado por um tipo de sabão especial, que lhe dá uma cor menos marrom que a de outras roupas sujas.
Quando Sócrates disse que “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida” ele estava complementando um dos lemas do Templo de Apolo, o célebre “conhece-te a ti mesmo”. Ora, mas para podermos nos conhecer, o método de Descartes (o da introspecção) não é tão produtivo quanto poderia parecer à primeira vista. O método mais proveitoso, não há dúvida, é o de Sócrates, o elenkhos. Inquirindo outros sobre questões morais e tentando refutá-los, eis que acabamos por fazer de modo elegante aquilo que nada é senão a lavagem de roupa suja. E foi por construir sua ego-história e, assim, expor a si mesmo e aos outros de modo abrupto, que Sócrates passou a ser odiado (e amado). E isso contribuiu em muito para o seu destino, o de ser acusado de corrupção dos jovens, de não acreditar nos deuses e de introduzir novos deuses. A filosofia como ego-história levou Sócrates à morte, e ao mesmo tempo o imortalizou.
A pergunta que vai e volta na história da filosofia é exatamente esta: o que foi esta lavagem de roupa suja que Sócrates promoveu em Atenas que tanto incomodou? O que era a “vida examinada”? Enfim, qual o conteúdo da ego-história socrática?
II
Em seu interessante A short history of ethics, Alasdair MacIntyre inicia pelo que seria um erro dos sofistas.[1] Ao estabelecerem o que é “por convenção” e o que é “por natureza”, os sofistas elegem como comportamento natural o que é, obviamente, um comportamento social mais antigo, aquele desenvolvido pelo homem dos tempos homéricos. A altivez egoísta do herói guerreiro e nobre da Ilíada é o que os sofistas apresentam como o homem natural. Contra este homem pretensamente natural, os sofistas indicam a figura do cidadão que é treinado na retórica para participar da vida pública. Os sofistas parecem ver nisso o ethos grego par excellence. Não podia ser diferente, uma vez que os sofistas são exatamente os homens que ganham a vida educando o grego para ser esse tipo de homem que maneja a retórica e que objetiva se sair bem nos negócios e na política.
Mas não é só isso que McIntyre diz no início de seu livro. Sua hipótese de trabalho é a de que Sócrates oferece uma alternativa ao duplo conjunto de características do homem, apresentado a partir do século V. Sócrates condena ambos os comportamentos, tanto o dos tempos homéricos quando o do ideal dos sofistas. Ele coloca na mesa as cartas da terceira via. Em uma época de transição, com valores ziguezagueando, Sócrates aponta para um comportamento moral claro, calcado na sua idéia da identidade entre virtude e conhecimento.
McIntyre não está preocupado em levantar as questões sobre a coerência ou não de Sócrates. Este é um assunto que povoa a literatura dos scholars helenistas. Ele centraliza a proposta moral de Sócrates em um único ponto: as virtudes cardeais dos gregos – justiça, devoção, temperança, coragem e sabedoria – só podem ser conhecimento, caso contrário não serão exercidas corretamente. Como pode ser corajoso o homem que não sabe responder à pergunta socrática “o que é a coragem?” Como pode ser justo o homem que não sabe responder à pergunta socrática “o que é a justiça”? Acoplado a essa idéia, o Sócrates de McIntyre desenvolve naturalmente a idéia da impossibilidade da akrasia, a fraqueza da vontade. Em suma, a tese é a seguinte: ninguém toma o caminho errado porque a vontade fraqueja, e sim porque opta pelo caminho que acha o melhor e, se erra, é por falta de conhecimento. A idéia da identidade entre virtude e conhecimento é isso: quem não é sábio e, então, não tem o conhecimento das virtudes, não poderá exercê-las, acabará por se desviar delas.
Essa é a doutrina positiva que Sócrates oferece como uma cunha entre o egoísmo do comportamento dos tempos homéricos e o relativismo sofístico da época grega clássica.
Os scholars helenistas dizem mais.[2] Eles disputam entre si sobre o entendimento de, no mínimo, mais duas teses: a da unidade das virtudes e a da virtude como eudaimonia. A unidade das virtudes diz que quem conhece uma virtude conhece todas. Sócrates não acredita que se possa alcançar uma virtude sem alcançar todas as outras. Apesar dessa tese ser controversa, não é difícil de entendê-la. Pois o modo como funciona o elenkhos – o método da refutação – faz com que Sócrates possa presumir que se alguém alcança uma definição de justiça por tal método, vai alcançar também a definição de coragem e assim por diante. Agora, a segunda tese é bem mais disputada. Pois, para nós modernos – principalmente após Kant – é difícil compreender como que uma virtude, um ato moral, pode ser exatamente aquele que conduz à felicidade. Kant e uma parte do cristianismo nos ensinaram a ver atos morais exatamente como aqueles que implicam renúncia e infelicidade.
Bem, aqui temos de lembrar que eudaimonia não é felicidade somente em um sentido subjetivo, mas também em um sentido objetivo, de realização e prosperidade. Felicidade é o bem último. Para todos que perguntamos o que querem na vida, e como resposta colocam algum bem, há sempre a chance de retomarmos a pergunta e dizer se não querem mais uma coisa ainda. Mas para os que respondem que querem a felicidade, as perguntas cessam. Então, nesse raciocínio, tanto Sócrates quanto os outros da antiguidade colocavam a eudaimonia como o bem último ou sumo bem. É a fim de alcançar a eudaimonia que nossas ações se efetivam. Agora, é claro que podemos ir conquistando vários bens para alcançarmos o que seria a nossa realização. Todavia, Sócrates nega que alguém que não conduz suas ações virtuosamente pode alcançar a eudaimonia. Ele faz um elenco de vários bens que podem proporcionar felicidade, mas nega que se possa ser feliz sem a sabedoria, pois a posse dos bens não traz felicidade caso não sejamos capazes de saber mantê-los e utilizá-los de modo correto. E se a sabedoria é uma virtude, e se não há a posse de uma virtude sem ter todas as outras, então eis que a virtude é base para a felicidade.
De Platão a Santo Agostinho, ainda que existam distinções a respeito de detalhes da tese de Sócrates, há a concordância quanto à relação da virtude com a eudaimonia. E é difícil não enxergarmos altivez em uma tese como esta.
III
Uma tese altiva? Sem dúvida. No entanto, Nietzsche desdenha Sócrates, a quem considera um decadente. Por que? E com que autoridade?
É bem conhecida a interpretação que Nietzsche faz da Mosca de Atenas em seu “O problema de Sócrates”, no livro Crepúsculo dos ídolos. Encerrada a época homérica, sendo os gregos não mais helenos, somente gregos, já não agiriam mais segundo a força dos instintos. Uma vez sem seus instintos, começaram a se sentir desorientados, fracos, doentes. Nietzsche os mostra como decadentes. O homem que aparece para curá-los é Sócrates. Médico da alma, Sócrates diz conhecer a cura. Mas é um engodo. Diante de doentes desenganados, não é tão difícil se fazer passar como aquele que conhece o verdadeiro remédio. Sócrates sabe que não pode curá-los porque ele, o mais doente, não curou a si mesmo com aquele remédio. O que fez foi encontrar um paliativo. Inventou um modo de suportar a vida com o procedimento que conseguiu criar. Qual? O uso da razão como se ela fosse o que é o natural do homem. Sócrates se fez homem teórico e conseguiu com isso suportar a doença da perda dos instintos. Mentiu para a juventude grega, ensinando-os a usar da razão e fazendo-os acreditar que a racionalidade é o que o homem tem de inerente a si mesmo, e que é sua natureza.
Nietzsche se pergunta como que apesar de feio Sócrates conseguiu seduzir os jovens que se encontravam com ele. E ele mesmo dá resposta que, então, se encaixa perfeitamete no seu argumento: Sócrates teria se aproveitado do gosto dos gregos pelas atividades lúdicas. Ensinou a eles um jogo, uma brincadeira, ou seja, o uso da dialética. Encantados com esse jogo e com a facilidade com que aprenderam a manuseá-lo a partir da imitação de Sócrates, os jovens começaram a achar que realmente era própria do homem a atividade racional. Aos poucos passaram a acreditar que o remédio de Sócrates funcionava. Em bem menos tempo do que se poderia imaginar já haviam invertido seus valores, desdenhando os instintos, que já não sabiam mais como funcionavam, e idolatrando a razão, que passaram a acreditar como sendo o único poder verdadeiramente natural do homem.
Sócrates operou essa transformação em si mesmo e, depois, nas pessoas em Atenas. Mas isso nunca o transformou em alguém sadio. Ele e todos os atenienses, como também nós os herdeiros dessa cultura, somos todos fracos, carcomidos, doentes. Arrastamo-nos pela vida, não temos nenhuma alegria de viver. Usamos de doutrinas e teorias, mas não as temos como nossas. Elas são penduricalhos. Somos poços profundos de aparências. Eis aí o legado de Sócrates, na conta de Nietzsche.
IV
Ora, que Nietzsche tenha uma filosofia da história alinhavada pelo niilismo, é bem sabido. Que essa filosofia da história indica que nossos afazeres em torno da razão, da metafísica, da teoria e, enfim, da filosofia, é um convite ao tédio, ao cansaço, à doença e à infelicidade, é fácil perceber pelos seus escritos. Também não é difícil de ver como que Sócrates é tomado como decadente. O que é mais difícil de entender em Nietzsche é a razão pela qual ele escolheu Sócrates.
Poderíamos responder: ora, Sócrates inicia a filosofia com o inquérito sobre valores e, ao mesmo tempo, carrega uma visão intelectualista da moral. Sua negativa em relação à akrasia mostra bem isso. Então, como alguém exageradamente teórico, ele teria de ser o escolhido por Nietzsche. Sua equação virtude = razão = felicidade seria uma fórmula facilmente reconhecida como um elemento de escravos, não de nobres. Mas o problema é que a figura de Sócrates não mostra nenhum homem doente. Comparada com as outras figuras que Nietzsche escolhe para representar o fraco, o doente, o servo, o escravo, a imagem de Sócrates parece a que menos se adapta a isso. Quando Nietzsche fala da “mulher velha e doente” como sendo o que há de mais corruptor, é fácil de entender. Quem diante de uma “mulher doente e velha” não se deixa invadir por piedade e, em seguida, por má-consciência? Não sentimos toda a culpa do mundo por não conseguir ajudá-la? Então, quando Nietzsche dá esse tipo de exemplo, fica fácil caminharmos junto de sua tipologia. Mas e Sócrates? Só pelo uso da razão? Somente por ele ter feito a equação que fez e vendeu como iguaria?
Sócrates é um “cansado da vida” – diz Nietzsche. Mas não só. Ele é criminoso, sedutor, corruptor – tudo aquilo que os judeus são diante dos romanos. O Sócrates de Nietzsche não é somente o “cansado da vida”, o niilista, ele é também o fraco. E o uso da dialética atesta isso, na conta de Nietzsche. Todavia, a figura de Sócrates não se encaixa tão bem nesse figurino. Entre todas as figuras que Nietzsche escolhe para falar do “fraco” ou do “doente” ou do “escravo”, Sócrates parece ser a sua construção mais forçada. Entre todos que ele escolhe para ser a bandeira de seus tipos, Sócrates parece não ser um bom ícone.
É possível contestar Nietzsche! Vejamos.
Sócrates é feio. Mas e daí? Nietzsche não era nenhum monumento estético. Além do mais, em tudo Sócrates era melhor que Nietzsche. O helenista Alexandre Nehamas lembra bem isso.[3] Enquanto que Sócrates podia beber a noite toda e, de manhã, estar completamente novo em folha, Nietzsche sequer agüentava um copo de vinho sem, no dia seguinte, remoer de enxaqueca. Enquanto Sócrates foi para a guerra já maduro, Nietzsche nem mesmo conseguiu agüentar muito seu fácil emprego de professor. Sócrates era capaz de andar dias seguidos sem sequer parar para a água e a comida. Nietzsche não podia largar sua bengala. Sócrates seduziu Alcebíades, teve mulher e filhos e, consta ainda, teve uma amante. Nietzsche nunca sequer conseguiu confessar qualquer coisa que porventura veio a sentir por Lou Salomé. Ora, diante de tudo isso, Nietzsche não deveria ter escolhido Sócrates para a figura do decadente.
Alexandre Nehamas lembra, no entanto, que Nietzsche confessou ser também ele um decadente.[4] E a conclusão do helenista é que Nietzsche, por isso mesmo, embora tenha profundo desgosto com a herança cultural deixada por Sócrates, não podia deixar de admirar a Mosca de Atenas, uma vez que se identificava com ela.
A tese de Nehamas é boa, em certo sentido. Mas a idéia da identificação é pouco útil. Afinal, no que Nietzsche achava-se parecido com Sócrates? Entre ele e Sócrates há um fosso. Que Sócrates, como quem dá vivas à morte possa ser um cansado da vida, tudo bem, mas isso não o faz próximo de Nietzsche. De modo algum. Nietzsche deveria ter admitido isso; deveria ter confessado sua extrapolação. Deveria ter visto que ele próprio era o principal exemplo de decadência, e poupado Sócrates de ter sido seu personagem para exemplificar a decadência.
V
Pode haver uma explicação para a escolha feita por Nietzsche? Não teria Nietzsche caído, ele próprio, na mesma vala de Alcebíades?
É claro que podemos aqui encontrar mil e uma formas de mostrar que a identificação de Nietzsche com Sócrates e, ao mesmo tempo, sua negação de Sócrates, são perfeitamente coerentes com sua filosofia da história, que mostra a cultura do Ocidente como percurso do niilismo. É bem evidente que, elegendo Sócrates como homem teórico, Nietzsche não tenha outra maneira senão escolhe-lo para fixar o ponto de partida do niilismo. Aqui, não estou procurando inventar um meio de desmentir Nietzsche. Todavia, estou longe de querer caminhos fáceis e já percorridos. Pois é impossível eu não sentir que há outros caminhos interpretativos. Eles batem à minha porta.
O que quero dizer é que talvez Nietzsche, como os jovens atenienses, tenha sido seduzido pela velha Mosca. Não estou dizendo que Nietzsche herdou, como qualquer um de nós, modernos, o que seria a decadência socrática. Não! Não é nesse sentido que falo em sedução. Estou dizendo algo mais direto, cru, grosseiro até. O que digo é que Nietzsche seria capaz de interromper um concurso de poesia e fazer o maior estardalhaço diante de Sócrates, implorando atenção e amor. Não consigo ver Nietzsche como uma figura impossibilitada de repetir Alcebíades.
Por que posso dizer uma coisa dessas? Tenho lá meus motivos. Coloco-os abaixo, ainda que de maneira resumida.
“O problema de Sócrates” não é uma crítica a Sócrates, é uma homenagem. Talvez até mesmo uma declaração de amor. É um dos textos mais bem cuidados de Nietzsche. E os adjetivos grandiosos são derramados. E para um decadente, um fraco, um enganador, o Sócrates apresentado não exibe nenhuma qualidade baixa que se possa desdenhar. Ao contrário, é um herói altivo na sua baixeza. O que quero dizer é que há um respeito e uma admiração de Nietzsche pela forma como Sócrates se comporta na sua vilania. Isso nos vem à mente quando comparamos o tratamento dado a Platão. Pois Nietzsche não faz o mesmo com Platão. Não é do feitio de Nietzsche homenagear inimigos. Ele joga terra na cabeça de Platão. Então, o modo como trata Sócrates – um inimigo, enfim – é realmente curioso.
Nietzsche denuncia Sócrates, jamais o ridiculariza. Quanto a Platão, Nietzsche o trata da forma mais cruel possível. A pior coisa que se pode dizer de alguém que escreve, é que escreve mal. A pior coisa que se pode dizer de alguém que tem fama de bom escritor, é que é um tédio. Sabemos bem disso. É exatamente isso que Nietzsche diz de Platão. Que ele é um decadente não no sentido de Sócrates, ele é um decadente por usar todo tipo de estilo, por ser um chato ao escrever. Nietzsche confessa não agüentar ler Platão. E não contente com isso, lembra que os leitores antigos de Platão diziam a mesma coisa.[5]
Quanto a Sócrates, ele age de maneira completamente diferente. Ele respeita Sócrates. Mas no aforismo 340 de A gaia ciência o respeito e a admiração abrem espaço para o erotismo. Nietzsche só faz elogios ao comportamento decadente de Sócrates, e esses elogios são claramente homoeróticos. Ele escreve: “admiro a sageza e a coragem de Sócrates em tudo que fez, disse … e não disse”. E mais: “este demônio de Atenas apaixonado e trocista, este encantador de ratos que fez tremer e soluçar os mais impertinentes jovens, não era apenas o mais sábio dos tagarelas: foi também sábio no silêncio”.[6]
Platão nunca gostou de mulheres. Foi homossexual sem qualquer desvio. Sócrates foi amado por Alcebíades, mas é provável que não tenha tido rapazes. Mesmo quando fala de segredos do amor ensinados na juventude, e que seriam bem comuns se ensinados por um homem mais velho, Sócrates não menciona figuras masculinas, ele lembra da figura de Diotima. Sócrates é viril. Platão é feminino: dentro de um corpanzil havia uma moça, uma voz fina que chamava a atenção. É difícil que Nietzsche não tenha sentido calafrios diante da figura máscula de Sócrates, como se ele próprio fosse um efebo, ou um Alcebíades tardio. Essa admiração amorosa, que resvala o erótico, transparece nas palavras citadas acima, que repito: “(…) encantador de ratos que fez tremer e soluçar os mais impertinentes jovens”. Ora, para que usar “tremer” e “soluçar”? Para que Nietzsche usa tais palavras senão como algo que lhe escapou pela boca e caiu no papel com todo seu suor. Nietzsche admira o criminoso. Mais que admira, ele tem fantasias com a virilidade socrática. É como a menina rica que sonha ser raptada pelo brutamontes favelado. É como a menina louca que se enche de fantasias com o estupro levado a cabo pelo ladrão forte e rude.
O trecho do parágrafo 340 diz mais: “Um homem como ele, um homem que tinha vivido alegre e, aos olhos de toda a gente, como um soldado, esse homem era um pessimista!” Ora, a palavra homem é repetida três vezes. E para completar, o adjetivo alegre vem junto com o caráter másculo de soldado. Para que? O que tem a ver soldado como antagônico de pessimista? Nada! Não há justificativa para tal construção gramatical. A palavra soldado, no caso, não é usada por Nietzsche para se contrapor a pessimista, como a frase está construída, ela aparece ali com a função de qualificar a palavra homem – gratuitamente. Ela está ali como fruto espontâneo de uma mão que escreve “homem, homem, homem e … soldado”. É como se Nietzsche estivesse suspirando, em pleno fervor de paixão pela masculinidade de Sócrates. Não há na obra de Nietzsche nenhum outro momento desse tipo. Ele não repete esse tipo de escrita com outros filósofos ou personagens.
Há mais que identificação com Sócrates. Há mais que polêmica com Sócrates. Nietzsche mataria Alcebíades se o encontrasse. Nietzsche odeia Platão por este ter podido viver ao lado de Sócrates durante tanto tempo. Após tantos séculos, diante de Nietzsche a Mosca de Atenas arrebata mais um coração.
© 13 02 2009 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo
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[1] McIntyre, A. A short history of ethics. Londres: Routledge, 1998, pp. 14-25.
[2] Brickhouse, T. e Smith, N. The philosophy of Socrates. Bulder, Colorado: Westview Press, 2000. Vlastos, G. Socrates, ironist and moral philosopher. N. York: Cornel University Press, 1991. Irwin, T. The development of ethics. Oxford: Oxford University Press, 2007, vol. 1.
[3] Nehamas, A. The art of living. Berkeley: University of California Press, 1998, cap. 5.
[4] Idem, ibidem, p. 152-54.
[5] Nietzsche, F. O crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Cia das Letras, 2006, pp. 102-3.
[6] Nietzsche, F. A gaia ciência. Lisboa: Guimarães editores, 1987, p. 227
ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
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