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Yourcenar. Memórias de Adriano


É difícil permanecer imperador na presença do médico, e mais difícil permanecer homem.

Esta manhã, pela primeira vez, ocorreu-me a idéia de que meu corpo, este fiel companheiro, este ami¬go mais fiel e mais meu conhecido do que minha própria alma, não é senão um monstro sorrateiro que acabará por devorar seu próprio dono.

Falta ao príncipe a latitude de que goza o filósofo: não pode permitir-se discordar dos demais ao mesmo tempo.

O apreciador da beleza acaba por descobri-la não importa onde, como o filão de ouro nos mais ignóbeis veios, para experimentar, ao manusear essas obras-primas fragmentárias, su¬jas ou quebradas, a emoção de um conhecedor solitário ao colecionar uma peça supostamente vulgar.

A verdade que pretendo narrar aqui não é particularmente escandalosa, ou melhor, não o é senão na medida em que toda verdade escandaliza.

Os filósofos, a fim de estudarem a realidade pura, subme¬tem-na quase às mesmas transformações que o fogo ou o pilão operam nos corpos: nada de um ser ou de um fato, tal como os conhecemos, parece subsistir nesses cristais ou nessas cinzas.

Que tal magistrado de aparên¬cia austera tenha cometido um crime, de modo algum me ajuda a conhecê-lo melhor. Daquele momento em diante, passo a estar em presença de duas incógnitas: a aparência do magistrado e seu crime.

(...) é justamente aquilo que não fui que a define com maior exatidão: bom soldado, mas não grande guerrei¬ro; apreciador da arte, mas não o artista que Nero acredi¬tava ser na hora da morte; capaz de crimes, mas não um criminoso.

O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inte¬ligente sobre nós mesmos: minhas primeiras pátrias foram os livros.

(...) quase tudo o que os homens disseram de melhor o foi em grego.

(...) tudo o que cada um de nós pode tentar para prejudicar os seus semelhantes ou para servi-los já foi feito, pelo menos uma vez, por um grego.

Quanto a mim, era aos vinte anos mais ou menos o que sou hoje, apenas sem a mesma consistência.

Não desprezo os homens. Se o fizesse, não teria o mí¬nimo direito, nem a mínima razão para tentar governá-los.

Existem poucos a quem não se possa ensinar con¬venientemente alguma coisa. Nosso grande erro é tentar encontrar em cada um, em particular, as virtudes que ele não tem, negligenciando o cultivo daquelas que ele possui.

(...) não se impede facilmente um homem decidido de continuar seu caminho, a não ser que se vá até o assassinato, (...)

Personagens diversas viviam em mim alternadamente, nenhum por muito tempo, e o tirano caído recuperava logo o poder.

(...) tanto o bem como o mal são uma questão de rotina, que o temporário se prolonga, que o exterior se infiltra no interior, e que, com o decorrer do tempo, a máscara se transforma na própria face. Já que o ódio, a estupidez e a loucura surtem efeitos duradou¬ros, não vejo” por que a lucidez, a justiça e a benevolência não surtam também os seus.

(...) o ouro virgem do respeito seria muito fraco sem uma certa liga de medo.

(...) os espíritos honestos e os corações vir¬tuosos recusaram-se a considerar-me implicado; os cínicos supuseram o pior, mas em compensação me admiraram mais por isso.

Cada um de nós possui mais virtudes do que os outros supõem, mas só o sucesso as coloca em evi¬dência, talvez porque se espere que deixemos de praticá-las. Os seres humanos confessam publicamente suas piores fra¬quezas quando se espantam de que os poderosos não sejam totalmente indolentes, presunçosos, ou cruéis.

(...) desprezar as alegrias do povo é insultá-lo.

(...) todo prazer sentido com gosto parece-me casto.

Roma perpetuar-se-ia na mais insignificante das cidades onde os magistrados se esforçassem por verificar a balança dos nego¬ciantes, por limpar e iluminar suas ruas, por se opor à desordem, à incúria, ao medo, à injustiça, e reinterpretar razoavelmente as leis. Assim, só sucumbiria com a última cidade dos homens.

Considero a maior objeção a todo e qualquer esforço para melhorar a condição humana o fato de os homens serem, talvez, indignos dele.

Quando tivermos reduzido o máximo possível as servidões inúteis, evitado as desgraças desnecessárias, restará sempre, para manter vivas as virtudes heróicas do homem, a longa série de males verdadeiros: a morte, a velhice, as doenças incuráveis, o amor não parti¬lhado, a amizade rejeitada ou traída, a mediocridade de uma vida menos vasta do que nossos projetos e mais enevoada do que nossos sonhos. Enfim, todas as desventuras causadas pela divina natureza das coisas.

Toda lei muitas vezes transgredida é má: cabe ao legislador revogá-la ou subs¬tituí-la antes que o desprezo por uma disposição insensata se estenda a outras leis mais justas.

Duvido que toda a filosofia do mundo seja capaz de suprimir a escravidão: no máximo, mudar-lhe-ão o nome. Sou capaz de imaginar formas de servidão piores que as nossas, porque mais insidiosas: seja transformando os homens em máquinas estúpidas e satisfeitas que se julgam livres quando são subjugadas, seja desenvolvendo neles, mediante a exclu¬são do repouso e dos prazeres humanos, um gosto tão absor¬vente pelo trabalho como a paixão da guerra entre as raças bárbaras. A essa servidão do espírito ou da imaginação, pre¬firo ainda nossa escravidão de fato.

Uma parte da minha vida e das minhas viagens foi dedicada a escolher os ocupantes dos primeiros lugares de uma burocracia nova (...). Conheço o perigo desses exércitos civis: resumem-se, em uma palavra, na instituição da rotina.

Oxalá reine apenas um insensato em cada século!

(...) o humano me satisfaz plenamente; nele encontro tudo, até o eterno.

Aqueles sábios esforçavam-se por encontrar seu deus para lá do oceano das formas, reduzi-lo à qualidade de único, intan¬gível, incorpóreo, a que ele renunciou no dia em que se quis universo. Vislumbrava de outro modo meu relaciona¬mento com o divino. Imaginava-me a secundá-lo no seu esforço de enformar e ordenar um mundo, desenvolvendo-o e multiplicando suas circunvoluções, suas ramificações e seus desvios. Eu era um dos segmentos da roda, um dos aspectos dessa força única empenhada na multiplicidade das coisas, águia e touro, homem e cisne, falo e cérebro simultanea¬mente, Proteu que ao mesmo tempo é Júpiter.

Os grandes ritos não fazem mais do que simbolizar os acon¬tecimentos da vida humana, mas o símbolo vai mais longe que o ato, explica cada um dos nossos gestos em termos da mecânica eterna.

(...) esse mundo onde a dor ainda existe, mas não mais o erro.

(...) astrólogos. A ciência destes últimos é incerta, falsa nos detalhes, talvez verdadeira no todo: já que o ho¬mem, parcela do universo, é comandado pelas mesmas leis que presidem o céu, não é absurdo procurar lá em cima os temas das nossas vidas e as frias simpatias que participam dos nossos êxitos e dos nossos erros.

(...) a calma tão propícia aos trabalhos e às discipli¬nas do espírito parece-me um dos mais belos efeitos do amor. Espanto-me de que essas alegrias tão precárias, tão raramente perfeitas no curso de uma vida humana, inde¬pendentemente da forma pela qual as tenhamos procurado ou recebido, sejam consideradas com tanta desconfiança por pretensos sábios que lhes receiam o hábito e o excesso, em lugar de temer sua falta e sua perda. Admiro-me de que utilizem, para tiranizar seus sentidos, um tempo que seria mais bem aproveitado para educar ou embelezar sua alma.

O que é, afinal, a própria volúpia, senão um momen¬to de atenção apaixonada do corpo? Toda felicidade é uma obra-prima: o menor erro a adultera, a menor hesitação a modifica, a menor deselegância a desfigura, a menor tolice a embrutece.

(...) é preciso contar com as decisões do belo desconhecido que existe, apesar de tudo, em cada ser que amamos.

Odeio a derrota, até mesmo a de outrem (...).

Meu respeito pelo mundo invisível não ia ao ponto de fazer-me confiar em disparates divinos (...).

A memória da maior parte dos homens é um cemitério abandonado, onde jazem, sem hon¬ras, os mortos que eles deixaram de amar. Toda dor prolon¬gada é um insulto ao seu desejo de esquecer.

(...) toda tolerância concedida aos fanáticos os faz acreditar imediatamente que se trata de uma manifestação de simpatia pela sua causa (...).

(...) era totalmente vão esperar, para Roma e para Atenas, a eternidade que não é concedida nem aos homens, nem às coisas, e que os mais sábios dentre nós negam aos próprios deuses. As formas sábias e complicadas da vida, as civilizações perfeitamente à vontade nos seus requintes de arte e felicidade, essas liberdades do espírito que se infor¬ma e julga, dependiam de probabilidades inumeráveis e raras, de condições quase impossíveis de reunir e que não devía¬mos esperar que durassem.

Nem aos impérios nem aos homens será dado o tempo necessário para que aprendam à custa de seus próprios erros.

(...) a possibilida¬de de atirar fora todas as máscaras é uma das raras vanta¬gens que o envelhecimento me dá (...).

(...) nada é mais lento do que o verdadeiro nascimen¬to de um homem (...).

Pergunto-me, por vezes, que escolho fará naufragar tanta virtude, porque naufragamos sempre: será uma esposa, um filho muito amado, enfim, uma dessas armadilhas legítimas que aprisionam os corações timoratos e puros? Serão simplesmente a idade, a doença, o cansaço, o desengano que nos dizem que, se tudo é vão, a virtude também o é?

Há mais de uma sabedoria, e todas são igualmente necessárias ao mundo. Não há mal em que se alternem.

Desejava morrer, mas não queria sentir a asfixia; a doen¬ça acaba por nos fazer desgostar da morte; passamos a dese¬jar a cura – o que é uma maneira de querer viver.

Mas a solicitude dos meus amigos equivale a uma constante vigi¬lância: todo doente é um prisioneiro.

A hora da impa¬ciência passou. No ponto em que me encontro, o desespero seria de tão mau gosto quanto a esperança.

Pequena alma, alma terna e inconstante, companheira do meu corpo, de que foste hóspede, vais descer àqueles lugares pálidos, duros e nus, onde deveras renunciar aos jogos de outrora. Por um momento, contemplemos juntos ainda os lugares familiares, os objetos que certamente nunca mais veremos… Esforcemo-nos por entrar na morte com os olhos abertos…

19/04/2013 10:18
ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
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