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Amor cortês




Ticiano, 1490-1576. Amor sagrado e amor profano. Clique no link para ver a imagem em tamanho maior:rel://files/sacred-and-profane-love-1514.jpg

Na literatura ocidental, a partir do século XII o discurso
do amor se associa à dor, ao sofrimento e à promessa de
felicidade
...
No século XII, portanto em plena Idade Média, os
poetas inventaram um amor para fazer poesia. Na época dos
trovadores a França, apesar de sua unidade política, estava
dividida lingüisticamente: ao norte se falava d’oil e ao sul se
falava d’oc. É em língua d’oc que nasce um gênero lírico, a
canção de amor, que tem como tema o amor cortês. No
século seguinte, em Portugal e na Galícia — reinos em que
se falava a mesma língua, o galego-português — surge um
tipo de poesia, as cantigas de amor, que retoma a versão do
amor cortês das poesias do sul da França. Esse breve histórico
é importante para se compreender um amor que nasceu
submetido às formas fixas de uma poesia associada à música,
ao canto e a um conjunto de regras, que são as “leys
d’amor”. As características fundamentais do amor cortês
são: o objeto amado é inacessível em função da não-correspondência
(amor impossível); amor é sinônimo de se colocar
a serviço da amada, de sofrer e morrer de amor; as regras
que estabelecem as relações entre amante e amada (cortesia)
exigem humildade, fidelidade e segredo (sigilo da identidade
da amada).
A maioria dos estudos literários priorizou o
julgamento estético, a indagação sobre as causas culturais e
históricas desse amor, considerando-o expressão de uma
impostura subjetiva.
A originalidade de Lacan reside em ser o primeiro a se
descartar das questões sobre a origem do amor cortês e dizer
que é preciso apreender seu fenômeno. De saída, transforma
o julgamento estético em definição. Trata-se de um amor
fingido sim, mas esse fingimento não deve ser entendido
como sinônimo de falta de sinceridade, hipocrisia, e sim
como invenção advinda de um processo de construção,
contendo tudo o que de artifício é necessário para a invenção
de um objeto. Trata-se, portanto, de uma ficção que deve
ser tomada ao pé da letra, ou seja, de uma ficção que se
mostra como tal.
Essa discussão em torno da “falsidade” do amor cortês
se deve basicamente a dois fatores: em primeiro lugar, trata-
se sempre do mesmo, ou seja, do intenso sofrimento do
amante em função da indiferença da amada; em segundo, a
defasagem entre o lugar da mulher na poesia e na sociedade
medieval. Em relação ao primeiro ponto, quase todos os
estudos literários, e até mesmo Lacan, se referem a essa
repetição e ao fato de que, depois da leitura de muitas
poesias, fica-se com a impressão de que todas poderiam ter
sido escritas para uma mesma mulher. Em relação ao segundo,
na Idade Média as mulheres estavam reduzidas à função
fálica e, justamente por isto, só eram acolhidas pelo social
se cumprissem o papel da maternidade. Mas, se o valor
social da mulher era índice da potência do homem a quem
estava subjugada, desde o nascimento até a morte, em contrapartida
isto se transformava radicalmente quando sob a
pena do poeta ela se transfigurava na Dama, à qual o poeta-
amante iria dedicar seu amor em cantos que são lamentos
de dor. O primeiro trovador provençal de que se tem notícia,
Guilherme, sétimo conde de Poitiers e nono duque da
Aquitânia, foi um sedutor que acabou sendo excomungado
duas vezes. Todavia, quando representava o papel de amante
como trovador jurava fidelidade a sua Dama em nome de
um amor escrito. Bernart de Ventadorn, como homem do
seu tempo, foi um conquistador e esteve envolvido em
grandes aventurosas amorosas. Mas como trovador se mantinha
fiel a sua Dama e sofria por um amor impossível.
Lacan estabelece uma correspondência entre o amor
cortês e o amor que nos é apresentado por Ovídio, em A arte
de amar. Aparentemente essa comparação é absurda, porque
estamos diante de amores completamente diversos.
O amor cortês inibe o sexual, e o texto de Ovídio é inclusive
considerado um tratado para libertinos, já que nele se encontra
o que um homem deve fazer para levar uma mulher
para a cama. A relação entre o amor cortês e o que nos é
apresentado por Ovídio não se baseia no significado e sim
no significante. Artifício e serviço são os significantes que
permitem estabelecer a conexão entre esses dois amores. As
proposições de Ovídio são: o amor deve ser regido pela arte
(Arte regendus amor) e o amor é uma espécie de serviço
militar (Militae species amor est). Esses dois enunciados
estão literalmente presentes no amor cortês. Inventou-se
um amor para se fazer poesia. O lugar do amante nessa
poesia é o de se colocar a serviço da Dama, não para
conquistá-la, mas para travar uma batalha, cujas regras
estabelecidas colocam o amante na posição de vencido. Mas,
mesmo assim, é proibida a desistência. O amante só tem
direito de ingressar nessa Escola de Amor Infeliz se se submeter
às regras que determinam a maneira como se deve
cortesmente amar.
Em relação ao amor cortês se constrói uma organização
do significante, em que todas as regras conduzem à
inibição da sexualidade e à representação da mulher como
enigma indecifrável.
...
No amor cortês, os três elementos que constituem o
amor estão bem demarcados: sujeito (erastes/amante), objeto
(erômenos/amado) e mais além do objeto, que é a falta.
O amante tem abatido sobre si os mesmos efeitos que o real
produz no simbólico: a falta sob a forma de impossível. É
desse lugar de falta que o amante se situa como sujeito
desejante, oferecendo-se ao serviço de uma mulher, tal qual
o vassalo se coloca a serviço do senhor. Aquela que aceitou
ser escolhida para ser colocada no lugar de sua Dama aceita
o papel de amada com a condição de não corresponder a
esse amor. Só assim ela pode se tornar signo da própria falta.
O amor cortês é o amor que coloca em cena a desarmonia
do par amante-amado, explicitando que o que falta ao
amante não é o que o amado tem.

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ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
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