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Fausto




Rembrandt van Rijn. Fausto. Clique no link para ver a imagem em tamanho maior:rel://files/faust.jpg!HalfHD.jpg


Fausto e Rei Arthur são as duas únicas mitologias ocidentais relevantes depois de Cristo. (a) é o homem moderno, o 'homem fáustico', protagonista da tragédia do desenvolvimento, vítima do excesso e do pragmatismo desenvolvimentista, numa perpétua busca além de qualquer satisfação humana, tomado pelo sentimento de culpa (T2013p).

LPD

No século 16, na Alemanha, viveu um certo doutor Johan Faust, experto em magia, alquimia e cabala. Este personagem real provavelmente deu origem a um dos mais importantes e universais mitos esotéricos e psicológicos, traduzido na lenda de “Fausto e Mefistófeles”, a história do homem (Fausto) que vende a alma ao diabo (Mefistófeles) em troca de poder e sabedoria. Na realidade, ambos os personagens representam aspectos da alma humana, inquieta e ambiciosa, faminta de conhecimento das supremas verdades. Esse mito ganhou, com o passar do tempo, proporções arquetipais. O conflito de Fausto e Mefistófeles simboliza não mais apenas o homem como indivíduo, mas a própria humanidade, sonhadora e descontente, com suas aspirações e suas fraquezas.

f.: Pellegrini, L. (1995). Dicionário de Símbolos Esotéricos. São Paulo: Editora Três.

Dabezies e eu

Fausto é um dos mitos literários mais célebres. Surgiu como lenda transmitida oralmente, reduzida a escrito por um anônimo em Frankfurt em 1587, num livro de enorme sucesso, que teve 22 edições em dez anos e foi copiado, imitado, traduzido para vários idiomas e fez fama na Europa toda. Em 1590 o célebre dramaturgo Christopher Marlowe escreveu uma peça baseada numa das versões dessa obra. Goethe trabalhou no seu Fausto, o mais famoso até hoje, de 1771 até 1832, ou seja, praticamente toda sua vida adulta. E a partir da obra dele Fausto se incorporou ao universo literário e as versões, adaptações, releituras e paródias são quase incontáveis. Como observa Dabezies (2005) entre os mitos literários Fausto é 'um paradigma quase completo'.

O Fausto das lendas orais medievais é um bruxo ambicioso que troca sua alma pelo conhecimento da magia, e sofre uma morte cruel. Sua história é redigida com intenção de fazer rir e meter medo, simultaneamente. O de Marlowe segue esse modelo farsesco, mas tem ambições um pouco mais heroicas; a comicidade é dada pelo contraste entre o sábio intelectual que não consegue se livrar das trapaças do diabo e ruma para a perdição, enquanto seu criado, um bufão burlesco, mas cheio de bom senso, escapa (um esquema similar ao Dom-Quixote / Sancho Pança).

O Fausto de Goethe e dos românticos ambiciona o saber, 'um titã em revolta contra um mundo malfeito, um individualista suficientemente audacioso para desafiar a moralidade, a sociedade, a religião'. Em algumas versões ele é salvo, ou pela nobreza de suas aspirações, ou pelo amor de uma mulher.

O Fausto moderno segue esse modelo heroico, é um Prometeu à moda do super-homem de Nietzsche, uma figura ideal da humanidade moderna que aspira à liberdade e ao progresso, é movido pela vontade de potência.

Porque foi uma das ideias manipuladas pelos nacional-socialistas, a figura fáustica foi estigmatizada depois da 2ª Guerra, e hoje é menos popular na literatura, talvez porque nos dias atuais 'tenhamos menos necessidade de figuras simbólicas do homem às voltas com seus demônios' (Dabezies, 2005, p.339).

Em suma, o Fausto medieval é o homem da Renascença, querendo o poder, o saber e o prazer. O romantismo o relê como um heroi modelo de humanidade, com desejo metafísico de infinito, aspirando ao conhecimento e ao amor, terminando por estender suas pretensões além dos limites da humanidade e rumando assim para a ruína. O Fausto moderno é imagem ideal do homem moderno, liberto das representações antigas e conquistando sem drama o saber e a força, mas lembrando que o homem não afasta facilmente da sua vida o mal e o erro, nem a ambiguidade dos seus poderes aumentados. Os dois motores que dão força ao mito são o ímpeto que mode o homem e o peso e que o mal e a tentação têm (Dabezies, 2005, p.343).

Os Faustos firmam o pacto em duas etapas, sendo a primeira uma tomada de consciência da possibilidade — e necessidade — de um modo de ser divergente do padrão, e "quando se chega a conhecer o outro, torna-se impossível seguir o caminho da maioria" (Hesse, 1919, p.112.). O Fausto, depois de alguma iniciação — que para Emma ocorreu naquele baile — que lhe mostra um sonho mais ambicioso, se isola da manada: "a maioria das pessoas vive também em sonhos, mas não nos próprios, e aí é que está a diferença" (Hesse, 1919, p.114.).

No Fausto nasce, com a iniciação, a necessidade de viver o próprio sonho, ciente das dificuldades que isso trará, e por causa delas “nada na vida repugna tanto ao homem do que seguir pelo caminho que o conduz a si mesmo” (Hesse, 1919, p.46.). Para ele, todavia, parece não haver opção, a partir do instante em que tomou consciência, ou teve a intuição, de uma realidade superior: "o fruto da árvore do conhecimento sempre nos expulsa de algum paraíso" ("The fruit of the tree of knowledge always expels us from some paradise"; a frase está num livro de William Ralph Inge publicado em 1907; fonte: Wikiquote), e um Fausto é alguém que, por adquirir um grau de consciência superior — ou simplesmente diferente — do padrão, está expulso do paraíso da ignorância e seus confortos. Ele poderia dizer, como Riobaldo: “sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo. Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa” (Rosa, 1956, p.14.), porque o despertar fáustico não vem geralmente na forma de uma certeza, mas de um vislumbre gerador de uma dúvida que exige a busca da resposta, uma fome que exige ser saciada, mesmo que seja insaciável. No prólogo da peça (Goethe, 1832, quadro 1.) Mefistófeles descreve Fausto assim:
A descrição serve para Emma (como serviria para Riobaldo ou Demian): tem ânsia do infinito, quer alcançar as estrelas do céu e todos os prazeres da terra, mas nada a consola, nada sacia sua fome, e por isso vive aflita.

De forma que o homem fáustico é premido por "um dever: procurar-se a si mesmo, afirmar-se em si mesmo e seguir sempre adiante o seu próprio caminho, sem se preocupar com o fim a que possa conduzi-lo" (Hesse, 1919, p.124.). O pacto fáustico é uma afirmação de egotismo, de sobreposição do eu ao mundo, porque, como lembrou outro Fausto literário, Demian: "quem quiser nascer tem que destruir um mundo" (Hesse, 1919, p.91.). Esse homem consciente é o que passou pela transformação de camelo para leão, de que fala Nietzsche (1885.), e à sociedade que se opõe a seu projeto proclamando o "tu deves", ele replica "eu quero" [2].

Riobaldo, quando se entrega ao transe alcoólico-místico para celebrar seu pacto, no meio do turbilhão de pensamentos desconexos que tentam relatar um evento que não cabe em palavras, lembra-se de afirmar: "eu, eu, eu! (...) aquela firmeza me revestiu!" E estava firmado o pacto, com "Deus ou o Demo ― para o jagunço Riobaldo!" (Rosa, 1956.). Notar que Mefistófeles só pode ingressar na casa e na vida de Fausto quando chamado três vezes (Goethe, 1832, quadro 5, cena 1.). Riobaldo invoca três vezes a si próprio, pois é disso que trata o pacto: entrar em acordo com a sombra, com os próprios demônios internos. Essa é a segunda etapa do pacto fáustico: a ruptura com os padrões da "normalidade", a aceitação da marca de Caim, a marca invisível mas perceptível que identifica o diferente, o forte, o incômodo (Hesse, 1919, p.32.), pois "aquele que verdadeiramente só quer seu destino já não tem semelhantes e se ergue solitário sobre a terra, tendo a seu lado somente os gélidos espaços infinitos" (Hesse, 1919, p.126.).

A partir desse instante, o pactário não sente mais medo (como diz Riobaldo: "aquela firmeza me revestiu“), pois, nas palavras de Hesse, "só se tem medo quando não se está de acordo consigo mesmo" (1919, p.135.).

Trazido da dimensão mítica para o mundo cotidiano, o pacto fáustico nada mais é do que a hybris, a ousadia — ou a bravata — de ambicionar mais do que os costumes admitem como desejável, como sendo o quinhão do homem comum. Toda desmedida intencional é um pacto fáustico, e quem ultrapassa o metron sempre acaba em alguma espécie de inferno [3].



Bibliografia

Dabezies, André (2005). Fausto. In: Brunel, Pierre (org.) (2005). Dicionário de Mitos Literários. 4ª ed.. Trad. Carlos Sussekind. Rio de Janeiro : José Olympio, 2005. ISBN 85-03-00611-1. Pp. 334-343.

Hesse, Hermann (1919). Demian. 7ª ed., trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1972.

Rosa, J. Guimarães (1956). Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.


Notas e adendos:

[2] Nietzsche descreve, no discurso das três transformações, a trajetória do espírito em direção ao super-homem, passando pelos estágios do camelo, do leão e da criança. O camelo representa a aceitação conformada das imposições do coletivo. O leão representa a rebeldia, a negação dos valores tradicionais e a afirmação da liberdade sobre o dever. Diz Zaratustra, personagem por cuja boca Nietzsche ensina: "No deserto mais solitário, porém, se efetua a segunda transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu próprio deserto. Procura então o seu último senhor, quer ser seu inimigo e de seus dias; quer lutar pela vitória com o grande dragão. Qual é o grande dragão a que o espírito já não quer chamar Deus, nem senhor? “Tu deves”, assim se chama o grande dragão; mas o espírito do leão diz: “Eu quero”. O “tu deves” está postado no seu caminho, como animal escamoso de áureo fulgor; e em cada uma das suas escamas brilha em douradas letras: “Tu deves!” Valores milenários brilham nessas escamas, e o mais poderoso de todos os dragões fala assim: “Em mim brilha o valor de todas as coisas”. “Todos os valores foram já criados, e eu sou todos os valores criados. Para o futuro não deve existir o “eu quero!” Assim falou o dragão." (Nietzsche, 1885).

[3] É uma paródia da frase de Inge, mas na verdade ele disse "O fruto da árvore do conhecimento sempre nos expulsa de algum paraíso" ("The fruit of the tree of knowledge always expels us from some paradise"; a frase está num livro de William Ralph Inge publicado em 1907; fonte: Wikiquote).
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