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O espírito na arte e na ciência
index do verbete
B [Paracelso].
1 ‘Nada exerce maior influência psíquica sobre o meio-ambiente da pessoa, sobretudo das crianças, do que a vida não vivida dos pais’ (2).
2 ‘O ressentimento e o inevitável sentimento de inferioridade do pai fará do filho o vingador da iniquidade cometida contra o pai’ (2).
3 ‘Há castigos fatalistas severos para a endogamia anímica’ (2) (endógamo: que ou aquele que só se casa com membros de sua própria classe ou tribo, com a finalidade de conservar sua nobreza ou sua raça; Houaiss).
4 ‘É bem mais fácil admitir que aquilo que não se entende, não existe’ (7).
5 ‘aquele que nada sabe, nada ama … No entanto, aquele que compreende, este, sim, ama, percebe e vê’ (Paracelso) (22).
C Sigmund Freud.
6 Contemporâneo espiritual de Nietzsche e [Joyce].
7 A época vitoriana é a época da repressão, uma tentativa de preservar artificialmente, através do moralismo, os ideais burgueses que são as últimas ramificações das representações religiosas da idade média. O iluminismo e a revolução francesa ameaçaram esses ideais e, por extensão, também ameaçaram antigas verdades no terreno político. A era vitoriana era o esforço para evitar que a idade média cristã se esvaziasse.
8 Freud tem a paixão do iluminista, esmagar a infâmia. Quer desmistificar a moral burguesa vitoriana, que enxerga embutida em todas as manifestações da alma – arte, filosofia, religião. Sua missão é de grande destruidor da hipocrisia e das amarras do passado. Derrubar falsos ídolos e trazer à luz a podridão da alma contemporânea.
9 Freud foi um grande destruidor, mas a passagem do séc. xix para o séc. xx ‘ofereceu tantas oportunidades de destruição que um Nietzsche não foi suficiente. Freud cuidou do resto, e o fez em profundidade’ (41). Freud comparado a um dentista que remove cáries de forma dolorosa, mas não oferece a obturação de ouro esperada. ‘A psicologia freudiana não oferece substituto para as substâncias que foram extraídas’ (42). ‘Quando o bom senso crítico nos diz que somos, de certa forma, infantis e sem juízo ou que toda expectativa religiosa é uma ilusão, o que podemos fazer com nossa falta de juízo ou o que deverá substituir em nós uma ilusão destruída? No ser infantil há uma ausência criativa de pressupostos, e a ilusão é uma expressão natural da vida; essas duas jamais se deixam subjugar ou substituir por uma racionalidade e utilidade ligadas a convenções’ (42).
10 ‘A idéia da sublimação significa, nada mais, nada menos, que a habilidade do alquimista em transformar o ignóbil em nobre, a inutilidade em coisa útil e de induzir o inaproveitável a se tornar aproveitável’ (32).
11 ‘Nietzche (...) para filosofar usava um martelo’ (30).
12 O programa de Freud não apresente nenhum plano para o futuro. Freud não é alguém de vanguarda, tudo nele é orientado para o passado, só se interesse pelo ‘de onde as coisas vêm’, e não para onde vão. O neurótico do fim daquele século era uma vítima inconsciente da psicologia vitoriana. Mas uma teoria da neurose baseada em preconceitos vitorianos é secundária, porque não se aplica a todos os homens em todas as épocas e lugares.
13 Leonardo [Da Vinci] e o problema das duas mães.
14 ‘Atualmente é imperioso que a voz daquele que clama no deserto utilize tons científicos se quiser atingir os ouvidos de seus contemporâneos. É preciso poder mostrar que foi a ciência que produziu tais resultados. Só isso convence quase sempre. Mas também a ciência não é imune à concepção inconsciente do mundo ’ (33).
15 ‘(...) tudo o que de um modo válido, ou aparentemente válido, for descoberto sobre a essência da alma, atrai para o seu território, automática e infalivelmente, o conjunto todo das ciências do espírito’ (36).
16 Breuer e Freud. Uma teoria que assumiu a opinião da idade média, substituindo o demônio da fantasia sacerdotal por uma fórmula psicológica. As representações que provocam a ‘possessão’ (Janet: obsessão) são as lembranças de acontecimentos traumatizantes, são baseadas num afeto nunca totalmente consciente (bloqueado, ab-reagido).
17 ‘Situações de angústia e sonhos angustiantes são decorrentes, por assim dizer, um do outro. Evidentemente originam-se da mesma e única raiz’ (38-9).
18 Teoria da repressão, ponto fundamental. O bloqueio do afeto traumático baseia-se na repressão de material moralmente incompatível. Os sintomas são produto da substituição das emoções, desejos e fantasias censurados por escrúpulos morais, éticos, estéticos e desalojados da consciência, inibidos de serem relembrados (39).
19 ‘O sonho é a via regia para o inconsciente’, Freud (39).
20 Assim como reconheceu na neurose a possessão da Idade Média, Freud resgatou a importância do sonho, que tinha, na antiga arte de curar e religião, dignidade de oráculo (39).
21 ‘Não existe doença que não tenha sido também uma tentativa malograda de cura’ (41).
22 A psicologia freudiana, baseada no estudo da neurose, ‘é um instrumento (...) que se torna perigoso e destrutivo ou, na melhor das hipóteses, imprestável quando se aplica a manifestações e necessidades naturais da vida’ (42).
23 ‘Apenas a dúvida é mãe da verdade científica. Quem combate o dogma em sentido absoluto, cai fácil e tragicamente na tirania da meia verdade’ (43).
24 ‘Nós podemos sucumbir a um envolvimento quando não percebemos em tempo por que fomos envolvidos. Pelo menos uma vez, deveríamos perguntar-nos: por que fui envolvido por aquele pensamento? O que significa isto para mim? Esta pequena dúvida pode ser uma salvaguarda para não sucumbirmos totalmente e para todo o sempre às nossas próprias idéias’ (44).
D Em memória de Richard Wilhelm
25 O especialista, via de regra, representa o espírito masculino, o intelecto, para o qual a fecundação é um processo estranho e contrário à natureza /46/.
26 Os chineses possuem, sim, uma ciência, cuja obra máxima é o I-Ching, mas essa ciência é incompreensível para os ocidentais porque não se baseia, como a ciência ocidental, no princípio da causalidade. Baseia-se na sinsincronicidade: a conexão entre os eventos não se baseia na causalidade, mas na simultaneidade.
27 A astrologia é digna de questionamento filosófico, e seu valor psicológico é inexorável, porque representa a soma de todo o conhecimento psicológico da antiguidade. Pode-se reconstruir o caráter de uma pessoa a partir do mapa astral da hora do seu nascimento. Mas o zodíaco astrológico, em que se baseia o horóscopo, não corresponde ao zodíaco celeste, cujo ponto de primavera se deslocou astronomicamente ao longo dos séculos, mas num sistema de tempo arbitrário, puramente conceitual /48/.
28 “As universidades não são mais fontes de conhecimentos. As pessoas estão cansadas da especialização científica e do intelectualismo racional. Elas querem ouvir a verdade que não limite, mas amplie; que não obscureça, mas ilumine; que não escorra como água, mas que penetre até os ossos” /49/.
29 “Dando uma esmola a um pobre, certamente não o estaremos ajudando, mesmo se for isso o que ele realmente deseja. No entanto, o ajudaríamos muito mais, se lhe indicássemos o caminho de um trabalho, através do qual ele se libertasse de sua miséria. Infelizmente os mendigos espirituais de nossos tempos estão por demais inclinados a aceitar as esmolas do Oriente e a imitar irrefletidamente seus costumes” /49-50/.
30 A Europa, pela força, dominou a Ásia. Quando Roma, pela força, dominou o oriente, o espírito oriental avançou sobre roma, Mitra tornou-se o deus militar romano. Agora o Oriente penetra no espírito da Europa /50/. Observa-se nas massas o aparecimento de um movimento gnóstico psicologicamente similar ao que os romanos sentiram 2 mil anos atrás. Na Europa de hoje se vê o mesmo quadro da Roma de 2 mil anos atrás, prevalecendo a confusão, a trivialidade, a extravagância, o mau gosto e a inquietação interior /51-2/.
31 “O homem instintivamente reconhece que toda grande verdade é simples. Aquele, cujo instinto está atrofiado, imagina, por isso, que ela se esconde em simplificações baratas e trivialidades” /51/.
32 “ingenuidade quase vegetal do espírito chinês” /52/.
33 Lei da enantiodromia, dos fluxos contrários, com o final de um ciclo inicia-se o seu oposto /52/.
E Relação da psicologia analítica com a obra de arte poética.
34 A arte, em sua manifestação, é uma atividade psicológica e, como tal, deve ser submetida a considerações de cunho psicológico. Mas só o aspecto da arte que existe no processo de criação artística pode ser objeto da psicologia. /54/
35 Acerca de Freud: “Quando uma obra de arte é interpretada da mesma forma como uma neurose, de duas uma: ou a obra de arte é uma neurose, ou a neurose é uma obra de arte” /56/.
36 Mas não se pode negar que “a realização de uma obra de arte depende das mesmas condições psicológicas de uma neurose” /56/, porque neurótico ou normal todo homem é influenciado pelas mesmas coisas, a relação com os pais, a repressão sexual, etc..
37 “Com relação à obra de arte é supérfluo investigar o condicionamento prévio a que estão sujeitas todas as pessoas em geral. É preciso perguntar pelo sentido da obra. O condicionamento prévio só interessa na medida em que facilitar a melhor compreensão do sentido. A causalidade pessoal tem tanto ou tão pouco a ver com a obra de arte, quanto o solo tem a ver com a planta que dele brota”. Porque a obra de arte não é só produto ou derivado, mas uma reorganização daquelas condições /60/.
38 Certas obras de arte nascem da intenção e vontade do autor, ele subordina seu material a seu propósito artístico; é o gênero introvertido, há afirmação do sujeito sobre as solicitações do objeto. Outro gênero de obras de arte brotam diretamente do inconsciente sem controle do consciente (é o self e não o ego quem cria); é o gênero extrovertido: o sujeito se subordina às solicitações do objeto /61-62/. Gera-se algo suprapessoal que transcende os limites da compreensão consciente, “estranheza de forma e imagem, pensamentos que só pudessem ser compreendidos intuitivamente, uma linguagem impregnada de significado, cujas expressões teriam o valor de autênticos símbolos, porquanto expressam, do melhor modo possível, o ainda desconhecido e são pontes lançadas a uma longínqua margem invisível” /64/.
39 “ a convicção do poeta de estar criando com liberdade absoluta seria uma ilusão do seu consciente: ele acredita estar nadando, mas na realidade está sendo levado por uma corrente invisível” /63/.
40 “A obra inédita na alma do artista é uma força da natureza que se impõe, ou com tirânica violência ou com aquela astúcia sutil da finalidade natural, sem se incomodar com o bem-estar pessoal do ser humano que é o veículo da criatividade” /63/.
41 O leitor se move dentro das fronteiras da consciência contemporânea. Os olhos antigos sõ podem ver o que estão acostumados a ver, por isso às vezes há necessidade de novos olhos.
42 “Daí o fato de a obra simbólica nos sensibilizar mais, mexer mais com o nosso íntimo e raramente permitir que cheguemos a um deleite estético puro; ao passo que a obra notoriamente não-simbólica fala mais genuinamente à sensibilidade estética porque nos permite a contemplação harmônica da sua realização perfeita” /66/. “(...) uma obra de arte simbólica e cuja origem não deve ser procurada no inconsciente pessoal do autor, mas naquela esfera da mitologia inconsciente, cujas imagens primitivas pertencem ao patrimônio comum da humanidade” /68/. Do inconsciente pessoal (fenômenos psicológicos que foram, ou poderiam ser, conscientes, mas foram reprimidos) “também dessa esfera fluem para a arte mananciais, mas são turvos e, quando predominantes, fazem da obra de arte não um símbolo, mas um sintoma” /68-9/.
43 “Talvez a arte nada ‘signifique’ e não tenha nenhum ‘sentido’, pelo menos não como falamos aqui sobre sentido. Talvez ela seja como a natureza que simplesmente é e não ‘significa’. Será que ‘significação’ é necessariamente mais do que simples interpretação, que ‘imagina mais do que nela existe’ por causa da necessidade de um intelecto faminto de sentido? Poder-se-ia dizer que arte é beleza e nisso ela se realiza e se basta a si mesma. Ela não precisa ter sentido” /66/.
44 “a fúria divina do artista se relaciona, perigosamente e de modo real, com o estado patológico, sem contudo identificar-se com ele” /67/. É um complexo autônomo que se desenvolve usando energia retirada do comando consciente da personalidade.
45 “Escrever poseia é elevar as coisas à linguagem do incompreensível” (Gottfried Benn), apud Cirlot, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. Trad. Rubens Eduardo Ferreira Frias. São Paulo: Editora Moraes, 1984, p. 309).
46 “Poesia significa deixar ressoar atrás das palavras a palavra primordial” (Gerhart Hauptmann).
47 O inconsciente coletivo não pode normalmente ser tornado consciente pelas técnicas analíticas ou pela rememoração, pois nem é reprimido nem esquecido. “A rigor o inconsciente coletivo nem existe, pois nada mais é do que uma possibilidade, ou seja, aquela possibilidade que nos foi legada desde os tempos primitivos na forma de imagens mnemônicas ou, falando em linguagem anatômica, dentro da estrutura cerebral. Idéias inatas não existem; existem possibilidades inatas de idéias (...)”. A imagem primordial, ou arquétipo, é uma figura mitológica, “resíduos psíquicos de inúmeras experiências do mesmo tipo” /69/.
48 “O momento em que aparece a situação mitológica é sempre caracterizado por intensidade emocional peculiar. (...) A luta pela adaptação é uma coisa penosa, pois temos que nos confrontar constantemente com condições individuais, quer dizer, atípicas. Não é de admirar que, quando alcançamos uma situação típica, sintamos de repente uma libertação toda especial, como se estivéssemos sendo carregados, ou nos sintamos agarrados por uma força superior. Em tais momentos não somos mais indivíduos, mas uma espécie; pois a voz de toda a humanidade ressoa em nós” /70/.
49 “Os ideais mais atuantes são sempre variações mais ou menos transparentes de um arquétipo, facilmente reconhecíveis por se prestarem a alegorias, por exemplo, a pátria como mãe” /70/.
50 “Toda referência ao Arquétipo, seja experimentada ou apenas dita, é ‘perturbadora’, isto é, ela atua, pois ela solta em nós uma voz muito mais poderosa do que a nossa. Quem fala através de imagens primordiais, fala como se tivesse mil vozes; comove e subjuga, elevando simultaneamente aquilo que qualifica de único e efêmero na esfera do contínuo devir, eleva o destino pessoal ao destino da humanidade e com isto também solta em nós aquelas forças benéficas que desde sempre possibilitaram a humanidade salvar-se de todos os perigos e também sobreviver à mais longa noite” /70/.
51 O processo criativo é uma ativação inconsciente do arquétipo que é elaborado em formalizado na obra acabada. O artista traduz para a linguagem do presente a imagem primordial. Eis o significado social da obra de arte: “ela trabalha continuamente na educação do espírito da época, pois traz à tona aquelas formas das quais a época mais necessita. Partindo da insatisfação do presente, a ânsia do artista recua até encontrar no inconsciente aquela imagem primordial adequada para compensar de modo mais efetivo a carência e unilateralidade do espírito da época”. O romantismo, o realismo, o naturalismo, eram tendências da arte que traziam à tona aquilo que a atmosfera espiritual da época mais necessitava. O artista é “educador de sua época”. Os povos, as épocas e os indivíduos têm atitudes e tendências. “Onde há tendência há exclusão”. Muitos elementos psíquicos não podem participar da vida porque são incompatíveis com as atitudes gerais. “O homem normal consegue suportar a tendência geral sem se prejudicar; mas o homem que caminha por atalhos e desvios, que não pode, como o homem normal, andar pelas amplas estradas principais, será o primeiro a descobrir o que se encontra afastado da grande estrada à espera de poder participar da vida. A relativa inadaptação do artista significa para ele uma vantagem real, permite-lhe permanecer afastado da estrada principal, seguir seus próprios anseios e encontrar aquilo de que os outros, sem o saber, sentiam falta. Assim como no indivíduo a unilateralidade de sua atitude consciente é corrigida por reações inconscientes, assim a arte representa um processo de auto-regulação espiritual na vida das épocas e das nações” /71/.
F Psicologia e poesia.
52 ‘Unilateralidade e rigidez de princípio são as doenças de criança de cada nova ciência’ (73).
53 Estudar a estrutura psicológica de uma obra de arte, e explicar as circunstâncias psicológicas do criador, são duas tarefas essencialmente diferentes. A psicologia pessoal do criador revela certos traços em sua obra, mas não a explica. (75).
54 Obras de valor literário extremamente duvidoso podem parecer particularmente interessantes para o psicólogo. O romance psicológico não interessa: move-se dentro dos limites do que é psicologicamente compreensível; não há ali mais que destino humano, alegrias e dores que se renovam indefinidamente, que o poeta exprime em primeiro plano, esclarecendo e transformando uma vivência banal em vivência interior, destrivializando. Seu tema são os conteúdos que se movem nos limites da consciência humana. Tudo se explica por si mesmo. Já o romance não-psicológico oferece ao psicólogo melhores possibilidades, pois ‘toda a narração se edifica sobre um plano de fundo psicológico inexpresso’. O modo visionário de criar opõe-se ao modo psicológico. No primeiro tudo se inverte, o tema ou vivência é-nos desconhecido, sua essência é de natureza profunda, parece provir de abismos de uma época arcaica, ou de mundos de sombra e luz sobre-humanos. O valor e o choque emotivo são acionados pela terribilidade da vivência, a qual emerge do fundo das idades, de modo frio e estranho ou sublime e significativo. Há um desconcertante encontro de acontecimentos tão poderosos que ultrapassam a extensão da sensibilidade e compreensão humanas, permitindo uma visão das profundezas incompreensíveis daquilo que ainda não se formou. ‘Elas nada evocam que lembre a vida cotidiana, mas tornam vivos os sonhos, as angústias, os pressentimentos inquietantes que despertam nos recantos obscuros da alma’ (76-80 passim).
55 ‘os materiais fornecidos pelos psicóticos são ricos e de um alcance significativo que apenas poderemos encontrar nas produções dos gênios’ (80).
56 ‘poetas também são homens e o que um poeta diz de sua obra frequentemente não é o que de melhor pode ser dito sobre ela. O importante é defender a seriedade da vivência originária, mesmo contra as resistências do poeta’ (82).
57 Na grande seqüência que vai de Hermas a Dante e Goethe, passando por quase dois mil anos, encontramos sempre a experiência amorosa pessoal subordinada a uma experiência visionária (82). A vivência da paixão humana está dentro dos limites da consciência, mas o objeto da visão é vivido fora dela. A intuição conduz-nos a áreas ocultas, coisas secretas, inquietantes, dúbias. ‘Elas se escondem do olhar do homem e este delas se esconde por um temor supersticioso, protegendo-se com o escudo da ciência e da razão. O cosmos é sua crença diurna, que deve preserva-lo da angústia noturna do caos (83). Às vezes a experiência sentimental tem só efeito desencadeante, o aspecto humano/pessoal é só prelúdio à divina comédia, que é essencial.
58 A obra de arte desse tipo não é a única que vem da esfera noturna. Visionários e profetas também dela se aproximam. Também nessa esfera incorrem os grandes malfeitores e destruidores, os ‘dementes que se aproximam demasiadamente do fogo’ (83).
59 Essa esfera inconsciente é obscura, mas não desconhecida. Sempre se manifestou em todos os tempos e lugares. Para o primitivo era elemento natural do seu mundo e da imagem que tem dele. ‘Apenas nós a excluímos por temor à superstição e afastando a metafísica, a fim de construir um mundo de consciência seguro e manejável, dentro do qual reinam as leis da natureza, da mesma forma que as leis humanas reinam num Estado bem ordenado. Mas o poeta discerne às vezes as imagens do mundo noturno, os espíritos, demônios e deuses, os emaranhados secretos do destino, assim como a intencionalidade supra-humana e as coisas indizíveis que se desenrolam no pleroma (1). Discerne às vezes algo do mundo psíquico, que é ao mesmo tempo o terror e a esperança do primitivo. Seria interessante pesquisar se a reserva relativa à superstição que se estabeleceu nos tempos modernos e a explicação materialista do mundo não representam derivados e uma espécie de continuação da magia e do medo primitivos dos espíritos’ (84).
60 Roda solar, cruz de oito ramos dentro de círculo, presente desde a idade da pedra, desenhos rodesianos. Símbolo. Esforços psíquicos para invocar ou expulsar realidades obscuramente pressentidas.
61 ‘como a expressão nunca atinge a plenitude da visão, nunca esgotando o que ela tem de inabarcável, o poeta muitas vezes necessita de materiais quase monstruosos, ainda que para reproduzir apenas aproximativamente o que pressentiu’ (85).
62 ‘O mais importante, porém, especialmente para a crítica liter´ria, é o fato das manifestações do inconsciente coletivo possuírem um caráter compensatório em relação à situação consciente; dessa forma, uma vida inconsciente unilateral, desadaptada ou até mesmo perigosa, tende a ser reposta em equilíbrio’ (86).
63 ‘Sempre que o inconsciente coletivo se encarna na vivência e se casa com a consciência da época, ocorre um ato criador que concerne a toda a época; a obra é, então, no sentido mais profundo, uma mensagem dirigida a todos os contemporâneos’ (86).
64 ‘Todas as épocas têm sua unilateralidade, seus preconceitos e males psíquicos. Cada época pode ser comparada à alma de um indivíduo: apresenta uma situação consciente específica e restrita, necessitando por esse motivo de uma compensação. O inconsciente coletivo pode proporcionar-lhe tal instrumento, mediante o subterfúgio de um poeta ou de um visionário, quando este exprime o inexprimível de uma época, ou quando suscita pela imagem ou pela ação o que a necessidade negligenciada de todos está almejando’ (87).
65 ‘(...) a psicologia específica do artista constitui um assunto coletivo e não pessoal. Isto, porque a arte, nele, é inata como um instinto que dele se apodera, fazendo-o seu instrumento’. (...) ‘Sua vida é necessariamente cheia de conflitos, uma vez que dois poderes lutam dentro dele’ (...) ‘São raros os homens criadores que não pagam caro a centelha divia de sua capacidade genial. É como se cada ser humano nascesse com um capital limitado de energia vital. A dominante do artista, isto é, seu impulso criador, arrebatará a maior parte dessa energia, se verdadeiramente for um artista; e para o restante sobrará muito pouco, o que não permite que outro valor possa desenvolver-se. o lado humano é tantas vezes de tal modo sangrado em benefício do lado criador, que a primeiro não cabe senão vegetar num nível primitivo e insuficiente’ (90).
66 ‘(...) um artista, isto é, um homem ao qual coube um fardo mais pesado do que aquele que é levado pelos demais’ (91).
67 ‘(...) a obra nasce de seu criador, tal como uma criança, de sua mãe. A psicologia da criação artística é uma psicologia especificamente feminina, pois a obra criadora jorra das profundezas inconscientes, que são justamente o domínio das mães’ (91).
68 ‘A obra em crescimento é o destino do poeta e é ela que determina sua psicologia. Não é Goethe quem faz o Fausto, mas sim a componente anímica Fausto quem faz Goethe’ (91).
69 ‘Um arquétipo em si mesmo não é bom, nem mau. É um numen (2) moralmente indiferente. Só através de sua confrontação com o consciente torna-se uma coisa ou outra, ou então uma dualidade de opostos’ (92).
70 ‘Não podemos esperar jamais que o poeta seja o intérprete de sua própria obra. Configura-la foi sua tarefa suprema. A interpretação deve ser deixada aos outros e ao futuro. Uma obra-prima é como um sonho que apesar de todas as suas evidências nunca se interpreta a si mesmo e também nunca é unívoco. Nenhum sonho diz ‘Você deve’, ou ‘esta é a verdade’; ele apenas propõe uma imagem, tal como a natureza que faz uma planta crescer. Compete a nós mesmos tirar as conclusões’ (93).
71 Os aspectos ambíguos da obra de arte se interrelacionam, ‘mas só o percebe quem se aproxima da obra de arte, deixando que esta atue sobre ele, tal como ela agiu sobre o poeta. Para compreender seu sentido, é preciso permitir que ela nos modele, do mesmo modo que modelou o poeta. Compreenderemos então qual foi a vivência originária deste último. Ele tocou as regiões profundas da alma, salutares e libertadoras, onde o indivíduo não se segredou ainda na solidão da consciência, seguindo um caminho falso e doloroso. Tocou as regiões profundas, onde todos os seres vibram em uníssono e onde, portanto, a sensibilidade e a ação do indivíduo abarcam toda a humanidade’ (93).
72 ‘a personalidade do poeta só pode ser considerada como algo de propício ou desfavorável, mas nunca é essencial relativamente à sua arte. Sua biografia pessoal pode ser a de um filisteu, de um homem bom, de um neurótico, de um louco ou criminoso; interessante ou não, é secundária em relação ao que o poeta representa como ser criador’ (93).
73 Obras citadas e interpretações sugeridas. O pastor de Hermas. Spitteler, Primavera Olímpica. Poimandres. Wagner, O anel dos Nibelungos, [Tristão], Parsifal. William Blake, desenhista (vide o livro Magia). Hipnerotomaquia de Jacob Boheme. Jarro de Ouro de E. T. A. Hoffmann. Rider Haggard, ‘Ela, a feiticieira’. Benoit, ‘Atlântida’. Meyrink, ‘A face verde’. Goetz, ‘O reino sem espaço’. Barlach, ‘O dia morto’. Motivos mitológicos emercem de forma dissimulada nas linguagem moderna das imagens. Em vez da Águia de zeus ou do pássaro Roca, o Avião. O combate de dragões cede vez à colisão ferroviária. O herói matador de Dragão é encarnado por um tenor interpretando figuras heróicas no teatro. A Mãe ctônica é uma gorda vendedora de legumes. Um motorista perigoso é Plutão raptando [Prosérpina]. Francesco Colonna não trata da história de uma paixão mas da relação com a anima, a imago negativa do feminino encarnada em Polia, que é a alma moderna do autor, complexa e paradoxal; a relação se desenrola numa forma arcaica e pagã. O Hades é ao mesmo tempo túmulo e mãe geradora. Fausto tece o motivo de margarida-helena-mater gloriosa-eterno feminino, que aparece sob uma forma suprema de anima, sem a crueldade pagã de Polia. Goethe retrata o homem fáustico, hipertrofiado e quase-divino, inumano, precisando se unir ao eterno feminino da sofia maternal. O sonho de Eckermann em que Fausto e [Mefisto] caem na terra como meteoro duplo lembra o motivo dos dióscuros. Mefisto lembra Mercúrio, o que combina com a natureza alquímica da obra de Goethe. Um elemento que vibra na alma alemã, um médico e professor, que também é feiticeiro sombrio, o arquétipo do sábio que traz auxílio mas é um mágico ilusionista e também o Diabo. O médico mítico cura feridas e tem uma ferida, Quíron é exemplo clássico, assim como Cristo e sua ferida no flanco.
G Ulisses
74 ‘Eu tinha um velho tio que pensava de modo retilíneo. Um dia ele me parou na rua e me perguntou: ‘Sabe como é que o Diabo tortura as almas no Inferno?’ Como eu dissesse que não sabia, ele prosseguiu: ‘Ele as deixa esperando’. Assim falando, seguiu seu caminho’ (95).
75 ‘(...) comecei a ler o livro de trás para diante. Este método demonstrou ser tão bom quanto o comum, quer dizer, o livro pode ser lido de trás para diante, pois ele não tem parte de trás, nem de frente, nem de cima e nem de baixo. (...) O livro tem a característica de um verme cortado ao meio que desenvolve uma cauda para a parte que ficou com a cabeça, e uma cabeça para a parte que ficou com a cauda’ (96). ‘No que diz respeito a Ulisses, nada é contraditório’ (101) ‘Ulisses é um documento humano de nosso tempo, e mais, é um segredo’ (107).
76 Obra pertencente à classe dos animais de sangue frio, vermes. Um modo de pensar visceral (as vísceras é que pensam).
77 Das 4 funções cerebrais (2 de percepção, sensação e intuição, 2 de discernimento, pensar e sentir), no livro a atividade cerebral realizada é exclusivamente a percepção.
78 ‘Na opinião de Oscar Wilde a obra de arte é algo completamente inútil’ (97).
79 ‘Abaissement du niveau mental’, Janet. Os doentes o fazer involuntariamente, mas artistas como Joyce o fazer após treino deliberado. A riqueza e profundidade do pensamento onírico vem à superfície perceptível, pois a função do real, isto é, a consciência adaptada, é desligada (97).
80 ‘Nunca se deve colocar o leitor diante da própria burrice – Ulisses, no entanto, faz exatamente isso’ (98).
81 ‘A anomalia mental também pode ser uma espécie de sanidade mental, inconcebível para a inteligência mediana, ou um poder espiritual superior’ (101).
82 Cubismo: tendência de reproduzir a realidade, ora de um modo grotescamente concreto, ora grotescamente abstrato. O quadro clínico da esquizofrenia é mera analogia, o esquizofrênico tem a mesma tendência de considerar a realidade como se lhe fosse estranha ou, ao contrário, alienar-se dela. No artista moderno não é doença individual, mas manifestação coletiva do nosso tempo que provoca essa tendência (101-102).
83 A distorção do sentido e da beleza pela objetividade grotesca ou pela grotesca irrealidade é, no doente, manifestação da destruição da sua personalidade. No artista, é propósito criativo, a destrutibilidade é fonte da unidade da percepção artística. A inversão do sentido em sem sentido, da beleza em feiúra, a beleza provocante do feio e a semelhança dolorosa do sentido com o sem sentido exprimem um ato criativo. Não é novidade: repete-se nas épocas de incubação criativa, onde uma desintegração se faz necessária. (102-3). Uma destruição criativa (104).
84 Os modernos conseguiram produzir a arte pelo avesso ou o avesso da arte: a arte que não visa de modo algum agradar (103).
85 Há uma reestruturação quase universal do homem moderno que está se libertando do jugo de um velho mundo (103).
86 ‘Desconfio, portanto, que a Irlanda medieval e católica cubra uma área geográfica infinitamente mais extensa do que a indicada nos mapas comuns (...). Essa idade média católica (...) parece ser universal (...). Estou convencido do seguinte: ainda estamos imersos até o nariz na Idade Média. Nada pode abalar essa situação. E por isso é necessário que profetas negativos como Joyce (ou Freud) esclareçam os contemporâneos medievais, profundamente preconceituosos sobre a outra realidade’ (105).
87 ‘Para os homens das sombras, os ideais não são atos criativos ou faróis no alto das montanhas, mas carrascos e prisões, uma espécie de polícia metafísica originalmente inventada no Monte Sinai pelo tirânico guia de hordas Moisés e posteriormente imposta à humanidade através de uma hábil artimanha’ (106).
88 ‘A atrofia dos sentimentos é uma característica do homem moderno que se manifesta como reação quando há sentimentos em demasia e principalmente sentimentos falsos. (...) O sentimentalismo é uma superestrutura erigida sobre a brutalidade. A insensibilidade é o oposto correspondente que sofre inevitavelmente as mesmas conseqüências’ (106).
89 ‘Profetas são sempre antipáticos e, via de regra, até mal educados’ (107).
90 ‘O artista é sem querer o porta-voz dos segredos espirituais de sua época e, como todo profeta, é de vez em quando inconsciente como um sonâmbulo. Julga estar falando por si, mas é o espírito da época que se manifesta e, o que ele diz, é real em seus efeitos’ (107).
91 O despreendimento da consciência pode ser expresso na figura homérica do magnífico e tolerante Odisseu navegando entre Cila e [Caribdis], entre duas ilhas chamadas espírito e mundo (108).
92 ‘Todos os Daedalus, Blooms, Harries, Lynchs, Mulligans e os demais, falam e se locomovem como se estivessem num mesmo sonho, que começa do nada e termina em lugar nenhum e somente existe porque ‘ninguém’ — um invisível Odisseu, o sonha. Ninguém sabe disso, e contudo todos vivem porque um Deus mandou que vivessem. Assim é a vida, e é por isso que os personagens joyceanos são tão verdadeiros — vita somnium breve (a vida é um breve sonho)’ (109).
93 ‘Suponho que a avó do diabo entenda muito da verdadeira psicologia da mulher, eu, no entanto, até agora, não’ (118).
H Picasso
94 A arte não-objetiva extrai seus conteúdos essencialmente do ‘íntimo’ da pessoa. Há um aumento daqueles elementos que não correspondem mais a nenhuma experiência externa, mas surgem de um ‘íntimo’ que se encontra atrás da consciência.
95 Neuróticos: quadros de caráter sintético com disposição de sentimento homogêneo e contínuo, carregados de sentido inconfundível. O sentido está implícito, o neurótico procura o sentido e sentimento correspondente, esforçando-se em transmiti-lo. Pode-se adivinhar o que ele quer expressar.
96 Esquizofrênicos: quadros que revelam ausência de sentimento, contradições sentimentais ou total falta de sentimento. Predomina a fragmentação, com linhas de ruptura, uma espécie de fendas de rejeição psíquica. Não revela tendência de exprimir um sentido, é como se tivesse sido subjugado e engolido pelo sentido e ele próprio estivesse dissolvido naqueles elementos. Adivinha-se o que ele não consegue expressar.
97 Símbolo da Nekya, a jornada para o Hades, a descida para o inconsciente e a despedida do mundo superior. O Azul-Tuat do mundo inferior egípcio. Aquele que não segue o ideal já reconhecido do belo e do bom, mas a força demoníaca da atração pelo feio e pelo mau.
98 A Nekya (3) não é uma queda titânica, sem sentido e puramente destrutiva, mas uma katabasis eis antron cheia de sentido, uma descida à caverna da Iniciação e do conhecimentos secreto. A jornada através da história da psique humana tem a finalidade de recompor o homem como um todo, despertando a memória em seu sangue (123).
99 Após o tempo da (Katabasis) (4) e katalysis, ocorre o reconhecimento da bipolaridade da natureza humana e da necessidade dos pares conflitantes de opostos. Após os símbolos da demência e desintegração, vêm imagens que representam a reunião dos opostos (claro-escuro, em cima-embaixo, branco-preto) /v. Dualidade/.
100 As cores berrantes correspondem à tentativa do inconsciente de dominar com violência o conflito dos sentimentos (cor = sentimento) (124).
101 Em geral o inconsciente apresenta-se ao homem na forma da ‘obscuridade’, de um (Kundry) (5), de uma feiúra antediluviana, horripilantemente grotesca ou de uma beleza infernal, quando o atingido por um tal destino pertence ao grupo dos neuróticos.
[Picasso] se transforma e aparece sob a forma submundana do trágico Arlequim, que é um velho deus ctônico. Arlequim se reveste de dualidade trágica, suas vestes ostentam os símbolos dos próximos estágios, visíveis para os iniciados.
glossário
(1) meristema formador da região central do eixo do caule e da raiz, composta pelos tecidos vasculares primários associados ao tecido fundamental.
(2) Númeno. Rubrica: filosofia. No Kantismo, a realidade tal como existe em si mesma, de forma independente da perspectiva necessariamente parcial em que se dá todo o conhecimento humano; coisa-em-si, nômeno, noúmeno, Númeno (Embora possa ser meramente pensado, por definição é um objeto incognoscível.) Obs.: p.opos. a fenômeno (‘no kantismo’)
(3) Parece que se refere à descida de Odisseu ao Hades (nekya de Odisseu, no canto XI da Odisséia).
19/04/2013 09:57
Jung
ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
INI | ROL | IGC | DSÍ | FDL | NAR | RAO | IRE | GLO | MIT | MET | PHI | PSI | ART | HIS | ???