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Gilgamesh
index do verbete
O ramo da vida imortal (Assíria)
7.a Da barsa:
189 “O Gilgamesh constitui um dos mais antigos monumentos da literatura universal, e há quem identifique reflexos dele na Odisséia dos gregos e no folclore de outros povos. É um magnífico exemplo do esplendor das culturas mesopotâmicas, no qual aparecem as eternas indagações humanas: o sentido da vida, a existência além-túmulo, a imortalidade.
190 Por volta do ano 1200 a.C. o poeta Sin-leqe-unnini, de Uruk ou Erech, na Suméria, organizou uma longa versão (3.600 versos, dos quais se conservaram 3.450), na língua acadiana, das histórias que se contavam a respeito de Gilgamesh e de seu companheiro Enkidu. Esse poema, gravado em 12 tábulas de argila, foi descoberto em 1847, durante escavações no palácio do rei [Senaqueribe], perto de [Nínive]. Combinado às muitas versões provindas de bibliotecas e arquivos do Oriente Médio (as mais antigas datam do segundo milênio a.C.), foi modernamente dividido em 12 seções.
191 O personagem central pode ser o mesmo rei Gilgamesh que ocupou o trono de [Uruk] na primeira metade do terceiro milênio a.C. e que segundo as listas sumerianas reinou "depois do dilúvio", mas não se tem nenhuma prova dos feitos que o poema relata. [Enkidu], que nos textos sumerianos é um servo, na versão acadiana é um amigo do herói.
192 Na primeira das 12 seções é exaltado o semidivino Gilgamesh, grande guerreiro e vidente, que oprimia o povo no afã de edificar os templos e as muralhas de Uruk. Para conter o tirano, os deuses fazem surgir ao lado dele a figura de Enkidu, espécie de sátiro. A segunda seção descreve uma competição de força, em que Gilgamesh leva a melhor sobre Enkidu. Os dois planejam sua primeira façanha, a destruição de Khumbaba, o monstro das montanhas, guardião do bosque dos cedros sagrados. Na terceira, expõem-se os preparativos do audaz empreendimento, contra as ponderações dos anciãos de Uruk, que tentam demover os dois heróis. Na quarta, vê-se o monstruoso Khumbaba, com seu vozeirão apavorante. Na quinta, o Monstro é eliminado.
193 Na sexta seção, Gilgamesh, de volta a Uruk, recusa proposta de casamento da deusa Ishtar e, com a ajuda de Enkidu, mata um Touro feroz que a deusa lança contra ele. Na sétima, Enkidu sabe, em sonhos, que terá de pagar com a vida pela morte do touro divino. Na oitava, lê-se a lamentação de Gilgamesh pelo amigo, a quem faz sepultar com grandes honras.
194 Na nona tábula, Gilgamesh, chocado com a perda de Enkidu, resolve pedir a Utnapishtim, sobrevivente do dilúvio, uma fórmula para escapar à morte. Na décima, a deusa Siduri ajuda o herói a encontrar Utnapishtim, que lhe conta o dilúvio, de surpreendente semelhança com o relato bíblico. Na 11ª, Gilgamesh, por indicação de Utnapishtim, vai colher no fundo do mar uma [Planta] que dá aos velhos o vigor da juventude. Uma Serpente rouba-lhe a planta e desaparece com ela. Na 12ª, Gilgamesh, de novo em Uruk, insiste em falar com seu amigo morto, que, por um buraco na terra, lhe diz que da morte ninguém se pode livrar”.
195 (f: Barsa CD).
7.b A História de Gilgamesh
196 (f: Del Debbio)
197 A realização de uma obra de arte, perdurável através dos séculos, é um dos mais notáveis “milagres” feitos pelo homem. É a realização intelectual e artística cuja verdadeira origem permanecerá largamente incompreendida.
198 Há nove mil anos, um sumério inventava a escrita e inaugurava a Era Histórica. É interessante salientar as notáveis conquistas intelectuais e materiais desse povo, inventor da escrita, fundador da civilização, iniciador da tradição intelectual do Oriente e do Ocidente, e berço das artes, das letras e das ciências.
199 A Literatura Suméria, a mais antiga conhecida pela humanidade, é paradoxalmente a que mais demorou a ser conhecida pelo homem moderno. Seu estudo foi iniciado após a descoberta da escrita e do povo sumério em meados do século passado. Está documentada em milhares de tabuletas de argila escavadas nas cidades mesopotâmicas. A maior parte desta literatura era formada de poemas de mitos e lendas, cantares épicos, documentos historiográficos, ensaios curtos e longos, dizeres e provérbios, assim como hinos e lamentações provavelmente usados nos cultos religiosos.
200 Cantar de Gilgamesh
201 O Cantar de Gilgamesh , considerada a obra-prima da literatura suméria, é um canto épico que narra as façanhas do Rei-herói, Gilgamesh, da antiga cidade de Uruk, na [Mesopotâmia]. O tema central vai além da narração de viagens, lutas e aventuras, temores e sonhos do protagonista: canta-se à amizade, ao amor, aos sentimentos de vingança, fala-se de opressão, de arrependimento e, acima de tudo, do temor à desaparição final e ao esquecimento após a morte. Este último é que leva Gilgamesh a uma procura insólita, desesperada e falida, mas não inútil, pela sua transcendência, da imortalidade.
202 Gilgamesh, talvez, o primeiro personagem histórico, viveu em torno do ano 2700 a.C. reinou em Uruk (a Erech bíblica) e construiu suas muralhas. Na lendária relação dos reis sumérios, ele é o sexto rei após o Dilúvio.
203 A obra em si parece, às vezes, obscura, principalmente por ser conhecida de forma incompleta. A mais antiga versão existente do Cantar foi escrita em sumério, por volta do ano 2000 a.C. sendo cópia de trabalho muito mais antigo. No próprio Cantar consta que, após retornar de suas viagens, o próprio Gilgamesh o escreveu, numa estela de pedra que colocou na base das muralhas de Uruk. Teria, desta forma, sido escrito poucos séculos (quatro a seis?) após a invenção da escrita.
204 Ponto de partida da literatura universal, a obra surge tão evoluída que, ainda hoje, mesmo separados pela barreira de 47 séculos, pela diferença de sensibilidade e pela nossa cultura moderna, configura-se uma leitura apaixonante, ainda que pouco conhecida fora dos círculos acadêmicos.
205 Ela nos toca não apenas pela sua beleza, mas também pela sua criatividade temática e técnica; os efeitos e técnicas poéticas que utiliza são invenções da literatura suméria, que a civilização atual continua usando, aperfeiçoados nos quatro a cinco milênios transcorridos:
206 O uso da métrica e da rima era desconhecido, mas praticamente todos os demais artifícios e técnicas poéticas foram usados com habilidade, imaginação e efeito: repetição e paralelismo, metáfora e símil, coro e refrão. Na narrativa poética suméria, contos épicos e míticos, por exemplo, abundam os epítetos estáticos, longas repetições, fórmulas recorrentes, longas e demoradas descrições e longos discursos. (Kramer, Os Sumérios, sua História, Cultura e Caráter, The Univ. of Chicago Press, 1963).
207 Esta e outras obras sumérias foram amplamente disseminadas, conhecidas e copiadas no Oriente Médio durante mais de dois milênios, recontadas e parcialmente incorporadas pelos escribas (e pelos nar ou aedas) em obras maiores. Grandes escritores usaram livremente temas sumérios, como no Gênese e no Livro de [Jó], por exemplo, e também em obras muito posteriores do Ocidente, como a “Descida ao Inferno” /v. Katabasis/ retomada por Dante na Divina Comédia. Homero possui ampla dívida com os sumérios: temática, nas viagens de Ulisses, na descida aos Infernos, e técnica, no uso de epítetos, a invocação e colaboração dos deuses e a convivência, amor e ódio, dos mesmos com os humanos e até a promessa de imortalidade àqueles a quem canta.
208 A existência desta obra-prima foi revelada pelo arqueólogo inglês George Smith que, em 1872, entre os restos da Biblioteca Real de Nínive, encontrou partes da descrição do Dilúvio Universal, semelhante mas muito anterior ao do Gênese do Antigo Testamento hebraico.
209 O Poema começa com o Elogio a Gilgamesh:
a Ó! Divino Gilgamesh, que todo o viu
b Eu te farei conhecer em todas as terras.
c Eu ensinarei sobre (aquele) que experimentou todas as coisas.
d Anu deu-lhe a totalidade do conhecimento do Todo.
e Ele viu o Segredo, penetrou o Mistério.
f Ele revelou o que houve antes do Dilúvio.
g Ele fez grandes viagens, até o limite de suas forças
h e quando voltou em paz…
i Ele gravou numa estela de pedra a narração de suas proezas
j e construiu as muralhas de Uruk, nosso lar,
k e as paredes do Templo de Eanna, o sagrado santuário.
l (...)
m E, sobre o próprio Gilgamesh, diz:
n Ele cruzou o oceano, os vastos mares até o sol nascente,
o Ele explorou as regiões do mundo, buscando vida.
p (...)
q Dois terços dele são divinos, um terço é humano.
r A grande deusa Aruru fez o modelo do seu corpo,
s ela preparou sua forma…
t … belo, o mais bonito dos homens,
u … perfeito…
v Gilgamesh é o pastor de Uruk, o refúgio,
w decidido, eminente, conhecedor e sábio.
x (...)
210 Gilgamesh, o Rei de extraordinária fortaleza e beleza, exerce seu poder às vezes com sabedoria, às vezes despoticamente: oprime os homens jovens e as mulheres de Uruk, sem que ninguém possa se lhe opor. Os deuses resolvem, então, criar um homem que seja o seu similar: Enkidu, o homem primitivo, nascido e criado nos campos entre as bestas selvagens, o mais forte dos homens. A partir desse momento deve-se produzir o encontro de Gilgamesh e Enkidu, isto é, da civilização com a barbárie. Enkidu vai enfrentar Gilgamesh que já o espera prevenido pelos seus sonhos, interpretados por sua mãe, a deusa Rimat-Nimsum. Depois de uma luta de titãs prevalece Gilgamesh, sendo reconhecido por Enkidu como seu superior. Tornam-se então amigos inseparáveis, transformando o mútuo respeito em verdadeira amizade que nunca haviam experimentado antes.
211 Gilgamesh convence Enkidu a viajar até a Floresta dos Cedros (no Líbano atual), com o intuito de matar o Guardião dos Cedros, Humbaba, o Terrível, cortar o Cedro Sagrado e obter glória e fama eternas. Apesar da oposição dos conselheiros, os amigos partem, confiantes na proteção do Deus-Sol, Shamash. Ao chegar à Floresta dos Cedros, Enkidu lembra o formidável poder de Humbaba e tenta convencer Gilgamesh a abandonar uma luta impossível e retornar. Mas Shamash os protege e, num trecho do Cantar de difícil compreensão, enfrentam Humbaba. Este é finalmente dominado pelos amigos, após uma luta de gigantes. Enkidu, temeroso das conseqüências de um revide, se deixarem Humbaba com vida, insiste que ele deve ser morto. O monstro amaldiçoa Enkidu condenando-o a ter curta vida e Enkidu, com seus braços formidáveis e sua enorme espada, corta a cabeça de Humbaba, despertando a ira do poderoso deus Enlil. Para aplacar o deus, Enkidu corta o maior dos cedros para com ele construir a Grande Porta do Templo de Enlil, em Nippur. Após terem cortado os cedros, iniciam o retorno e, à beira do Eufrates, constroem balsas que os levam de volta a Uruk. Enquanto Enkidu governa a balsa, Gilgamesh carrega triunfalmente a Cabeça cortada de Humbaba.
212 De volta a Uruk, a bela Ishtar, deusa do amor, propõe casamento a Gilgamesh, mas ele recusa, após lembrar os trágicos destinos dos anteriores amantes da deusa. Ishtar, desprezada, é um inimigo temível; na sua ira ela pede ao seu pai, o deus Enlil, para enviar o Touro dos Céus e destruir Gilgamesh, sua gente e sua cidade. Contra toda expectativa, os dois amigos conseguem matar a besta. Ishtar apela à justiça dos deuses que, afrontados pela morte de Humbaba e agora pela do Touro, decidem que um dos amigos deve morrer e esse será Enkidu, já amaldiçoado pelo Guardião dos Cedros.
213 Enkidu fica sabendo de sua morte iminente por um sonho. Na sua comovente revolta frente à injustiça, apela ao deus Shamash que, em sábia resposta, o faz lembrar que deve agradecer pelas coisas boas que viveu e pelo profundo sentimento de perda que deixará atrás de si. Enkidu adoece e, apesar do cuidado constante e devotado de Gilgamesh, que é o mais sábio, morre após doze dias. Gilgamesh, arrasado pela perda do amigo, rende-lhe honras, constrói uma estátua em sua memória, rebela-se contra o destino e percebe que alcançar a fama entre os homens pouco ou nada significa frente ao horror do decaimento físico e da morte.
214 Gilgamesh rebela-se contra a Morte e dedica-se a procurar o segredo da vida eterna. Para tanto, decide procurar o único homem que a conseguiu – Utnapishtim, o Longínquo – o Noé sumério, a quem, após sobreviver ao Dilúvio, os deuses concederam vida eterna.
215 Numa viagem cheia de perigos, Gilgamesh encontra criaturas fabulosas e estranhas que o advertem da impossibilidade de sua procura, mas, com férrea vontade, continua e acha o barqueiro de Utnapishtim, que o levará ao encontro deste através das Águas da Morte. Quando, finalmente, o encontra, após jornadas agonizantes, é surpreendido, pois em vez de encontrar um ser extraordinário, cujo segredo de imortalidade estava disposto a tomar pela força, encontra um homem comum. Perplexo, diz:
216 Estava decidido a lutar com você,
217 Mas agora meu braço pende inútil perante você.
218 Diga-me, como é que você, na Assembléia dos Deuses, achou a vida eterna?
219 E Utnapishtim responde:
220 Eu te revelarei, Gilgamesh, o que é secreto,
221 Dir-te-ei um segredo dos deuses!
222 Utnapishtim revela então o que aconteceu no Dilúvio e como ele com a sua família, parentes, amigos e animais foram salvos pela sua piedade e obediência ao deus Ea (nome sumério do deus Enki, deus das águas doces e criador do homem e da sabedoria). O deus Ea, após a terminação do Dilúvio, intercede a favor de Utnapishtim perante o poderoso deus Enlil, o guerreiro. Este, que ordenou o Dilúvio, fica irritado pela sobrevivência dos humanos e suspeita da lealdade de Ea que, argumentando eloqüentemente, convence-o de que não revelou o segredo. Enlil perdoa Utnapishtim e ainda o converte, bem como a sua mulher, em seres imortais.
223 Terminado o relato do Dilúvio e, frente à determinação de Gilgamesh, Utnapishtim lhe diz:
224 Então, quem convocará agora (a Assembléia) dos deuses para ti,
225 para que possas achar a vida que procuras?
226 Mas, já que o desejas, submete-te à prova:
227 deves resistir ao sono durante seis dias e sete noites.
228 Gilgamesh, esgotado fisicamente pela penosa viagem, cai no sono logo e dorme sete dias seguidos. Ele falha no teste, sem dúvida devido à terça parte humana de sua natureza, e deve retornar.
229 Antes de voltar, a esposa de Utnapishtim intercede frente a este para dar a Gilgamesh uma recompensa pelos seus esforços, dizendo:
230 Gilgamesh chegou aqui cansado e com as forças esgotadas.
231 O que você lhe dará para que retorne à sua terra com honra?
232 E Utnapishtim, dirigindo-se a Gilgamesh, já no barco:
233 Eu te revelarei um segredo dos deuses, uma coisa secreta.
234 Embaixo da água existe uma planta,
235 ela tem espinhos como uma sarça,
236 como uma roseira ela te ferirá as mãos
237 Se conseguires apanhá-la, terás nas mãos a planta que rejuvenesce.
238 Gilgamesh mergulha no fundo do mar, colhe a planta e a segura, embora esta lhe ferisse as mãos. A planta lhe permitiria viver de novo a sua vida, com a vantagem da sabedoria adquirida na sua viagem que contém segredos dos deuses. Mas ele duvida e decide primeiro testar a planta com os velhos de Uruk e, depois, comê-la. Há aqui um curioso ponto de interrogação. Por que Gilgamesh não come a planta imediatamente? Teria desconfiado de Utnapishtim? Logo ele, que percorreu o mundo real e o fantástico para encontrá-lo?
239 Inicia o retorno, cruzando a porta do mundo que antes tinha franqueado. Quando param para descansar, à noite perto de uma fonte de águas frescas, Gilgamesh vai tomar banho e uma serpente, sentindo a fragrância da planta, silenciosamente sai das profundezas, apodera-se dela, muda logo de pele e submerge, para desespero de Gilgamesh que, impotente, a vê desaparecer nas profundezas.
240 Então Gilgamesh sentou-se e chorou,
241 Grossas lágrimas correram-lhe pelo rosto.
242 (...)
243 Encontrei o sinal da vida e agora o perdi.
244 A esperança acabou. Gilgamesh retorna ao lar, mais velho e de mãos vazias, tendo agora entendido que não existe a chance de uma segunda vida real e muito menos a de imortalidade.
245 No fim da viagem, já nas muralhas de Uruk, Gilgamesh, com voz estremecida, mostra a muralha a Ur-shanabi, o barqueiro.
246 Repete-se o início do Cantar, só que agora as palavras são ditas pelo próprio Gilgamesh. Desta vez trata-se realmente de um solilóquio: perdida a esperança da vida eterna, Gilgamesh relembra e faz uma retrospectiva de sua vida. Ur-shanabi é apenas um símbolo do povo, cuja aprovação final talvez seja seu único consolo:
247 Ó! Divino Gilgamesh, que todo o viu.
248 Ele viu o Segredo, penetrou o Mistério.
249 Ele revelou o que houve antes do Dilúvio.
250 Ele fez grandes viagens, até o limite de suas forças
251 e quando voltou em paz…
252 Ele gravou num estela de pedra a narração de suas proezas.
253 A seguir, com uma reprise dos elogios feitos no início, termina a XI tabuleta. A maioria dos autores preferem terminar aqui o relato. Contudo, na XII tabuleta encontram-se dois episódios importantes “A descida ao Inferno” e “A Morte de Gilgamesh”, os mais antigos junto com a aventura da “Floresta dos Cedros”. A “Morte de Gilgamesh” parece ser a repetição de fórmulas rituais fúnebres, possuindo então alto valor arqueológico. “A descida ao Inferno” pode ser uma variante do sonho de Enkidu, prevendo a sua morte.
254 A descida ao Inferno
255 O episódio começa de forma desconexa, com imagens e visões que pareceriam extraídas de um sonho. Depois de uma sucessão de imagens, quase incompreensíveis para a nossa sensibilidade moderna, temos:
256 A Flauta e a Harpa caíram na Grande Mansão (o inferno)
257 Gilgamesh enfiou nela sua mão, mas não pôde alcançá-las.
258 Enfiou o pé, mas não pôde alcançá-las.
259 Então Gilgamesh sentou-se frente ao palácio dos deuses do mundo subterrâneo,
260 derramou lágrimas e ficou com o rosto pálido.
261 Ó minha flauta, ó minha harpa!
262 Minha flauta cujo poder era irresistível!
263 Minha flauta, minha harpa, quem as trará dos infernos?
264 Enkidu se prontifica a ir aos infernos procurá-las. Gilgamesh dá-lhe então conselhos para facilitar o seu retorno, como o de não usar ungüentos perfumados, nem vestir roupas limpas, nem deixar o seu arco na terra etc. para que os espíritos não o prendam. Mas, confiando nas suas forças, Enkidu faz tudo errado e a terra “o pega”:
265 O destino não o possuiu, nenhum espectro o possuiu, a terra o possuiu,
266 Não caiu sobre o campo de batalha, a terra o possuiu.
267 Gilgamesh tenta de todas as formas conseguir, através dos deuses, a libertação de Enkidu. Mas [Enlil] nem o escuta. Finalmente o deus [Ea], criador e protetor dos homens, comanda ao deus dos infernos, [Nergal]:
268 Abre o fosso que comunica com os infernos,
269 Que o espírito de Enkidu volte dos infernos
270 e possa falar com seu irmão!
271 Aberto o fosso por Nergal:
272 O espírito de Enkidu, como um sopro, saiu dos infernos
273 E Gilgamesh e Enkidu falaram:
274 - Ó meu amigo, meu caro Enkidu,
275 diga-me a lei do mundo subterrâneo, você a conhece.
276 - Não, não te direi a lei que conheço.
277 Não te direi a lei para que não te sentes a chorar!
278 - Seja assim. Quero sentar-me e chorar!
279 Então, seguem-se as revelações que Gilgamesh mais teme:
280 Aqueles que quiseste, os que eram gratos a teu coração,
281 todos os que acariciaste,
282 estão agora roídos pelos vermes,
283 estão cobertos de pó.
284 Seus espíritos não têm descanso nos infernos.
285 Os detalhes deveriam ser muito atemorizadores para o espírito sumério da época e nos lembram passagens do “Inferno” da Divina Comédia de Dante.
286 Não há retorno real de Enkidu, que, vítima de sua fidelidade e por não ter respeitado a sabedoria dos conselhos de Gilgamesh, que representa o Saber e a Ciência, deverá ficar para sempre nos infernos.
287 Morte de Gilgamesh
288 O destino de Gilgamesh, decretado pelo pai dos deuses, Enlil, está cumprido:
289 Na Terra inferior, na casa das trevas, uma luz o iluminará,
290 Nenhum homem famoso uma lembrança como a dele deixará,
291 As gerações futuras não terão uma lembrança que se compare à dele.
292 (...) sem Gilgamesh não haverá luz.
293 Ó Gilgamesh, foi-te dada a realeza segundo o teu destino.
294 A vida eterna não era teu destino.
295 Humildes e poderosos da cidade choram a morte de seu herói e protetor. Esposa e filho, concubinas, músicos, bufos, todos os que comeram de sua mesa, servos, mordomos e os que viveram no seu palácio pesam as suas oferendas para Gilgamesh e para Ereshkigal, a Rainha da Morte e para os deuses dos mortos.
296 O destino falou. Qual um peixe preso no anzol,
297 Gilgamesh está deitado em seu leito,
298 Como gazela presa no laço
299 (... )
300 Gilgamesh, filho de Ninsun, está em seu túmulo
301 No altar das oferendas ele pesou o pão,
302 No altar das libações ele verteu o vinho.
303 Nesses dias partiu Gilgamesh, filho de Ninsun
304 o rei, nosso senhor, sem igual entre os homens,
305 Aquele que não faltou a Enlil, seu deus.
306 Ó Gilgamesh, senhor de Kullab, grande é a tua glória!
307 Termina assim a Épica mais antiga da humanidade. Não só com a morte física do herói, mas com o seu fracasso na procura pela vida eterna.
308 Gilgamesh morre junto com os seus sonhos, mostrando assim que é humano. A partir dessa verificação, só lhe resta voltar à sua amada Uruk, para deixar a marca perene de sua existência.
309 Morta a esperança, Gilgamesh alenta nas suas façanhas, e por isso é que faz sua retrospectiva vital ao barqueiro Ur-shanabi, único a testemunhar sua luta impossível contra o destino efêmero dos humanos.
310 Por isso é que escreve na pedra o que viveu na vida:
311 Ó Gilgamesh, foi-te dada a realeza segundo o teu destino.
312 A vida eterna não era teu destino.
313 Quando os deuses criaram o homem
314 deram-lhe como atributo a Morte,
315 mas a Vida, a Vida Eterna, essa, só ficou para eles.
316 Este poderia ser o epitáfio na lápide de Gilgamesh, a gigantesca figura que, através dos séculos, marca a despedida definitiva da Humanidade da escuridão impenetrável da Pré-História, que ainda se entrevê nos detalhes do relato do sábio Utnapishtim do mundo antes do Dilúvio Sumério.
317 Gilgamesh não atinge a imortalidade fútil dos deuses sempiternos que, na sua imobilidade, mais semelham a morte do que a vida. Ele atinge a imortalidade dos arquétipos humanos na memória dos seus iguais, os homens. Obras materiais, como a muralha de Uruk, persistem após 47 séculos de história de uma das regiões mais conturbadas do mundo. Mas ele perdura pela sua constante procura da essência da eternidade, pela consciência insigne de seu conhecimento, pelo que gravou na pedra e impregnou na mente das gerações que o seguiram, cumprindo assim as proféticas linhas finais do poema.
318 Ele perdura porque a história de sua ciência, de sua força de vontade e de sua coragem nos foram transmitidas – talvez por ele mesmo – e porque elas encarnam o ideal humano de uma vida onde cada obstáculo dá origem a um novo esforço que o leva à contínua superação.
319 Como Modelo Literário, o Cantar teve as maiores conseqüências imagináveis. Conhecido de toda a antigüidade, ele foi imitado e inspirou obras-primas que conhecemos muito antes, como o Gênese do Velho Testamento hebraico e a Odisséia.
320 O Cantar, conhecido até poucos séculos depois de Cristo, perde-se com a decadência e desaparecimento da Babilônia. Ele é reencontrado nas escavações feitas por volta de 1860, por arqueólogos ingleses em Nippur e alemães em Uruk (atual Warka) e depois na própria Babilônia. Assistimos, aos poucos, ao renascimento de Gilgamesh… E, talvez, essa seja a chance que a história, reencarnando a “planta do rejuvenescimento” de Utnapishtim, dá a Gilgamesh: viver sua segunda vida na memória e na imaginação do homem moderno.
321 Ele conquistou a imortalidade da espécie, devido à terça parte humana de sua constituição, a mesma que, paradoxalmente, lhe impediu de atingir o eterno absoluto dos deuses.
322 Mas, não é isso mesmo o que o poeta lhe promete no início do Cantar?
323 Mas, eterno é o poeta ou a personagem?
324 Poeta e personagem identificam-se e, enquanto nos contemplam, com a perspectiva de 47 séculos e a condescendência que dá a longa intimidade com o transcurso milenar do tempo, cada um eterniza-se no outro e na mente e na imaginação dos demais homens.
325 Por S Caticha Ellis, originalmente no site Kplus.
ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
INI | ROL | IGC | DSÍ | FDL | NAR | RAO | IRE | GLO | MIT | MET | PHI | PSI | ART | HIS | ???