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Eliade, Mito e realidade
vb. criado em 24/05/2013, 19h50m.
index do verbete
MITO E REALIDADE
MIRCEA ELIADE
FICHA DE LEITURA
PARTE I A ESTRUTURA DO =M
A. - A IMPORTÂNCIA DO =M VIVO
1 mito: tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar.
2 O mito fornece os modelos para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo, significação e valor à existência /8.
3 Compreender o sentido de estranhas formas de conduta ‘equivale a reconhece-las como fenômenos humanos, fenômenos de cultura, criação do espírito – e não como irrupção patológica de instintos, bestialidade ou infantilidade’ /9. ‘compreender os antecedentes míticos que explicam e justificam tais excessos’ /9.
II TENTATIVA DE DEFINIÇÃO DO =M
4 Uma história sagrada: ‘ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio’ /11.
5 O mito narra como, graças às façanhas dos entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir. É sempre a narrativa de uma criação. Os personagens do mito são os entes sobrenaturais. Os mitos ‘descrevem as diversas (...) irrupções do sagrado (...) no mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o mundo e o converte no que é hoje’ /11.
6 O mito é considerado uma história sagrada e portanto verdadeira: porque a existência do mundo está aí para prova-lo /12.
7 ‘A principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares, de todos os ritos e atividades humanas significativas’ /13.
8 Os povos antigos distinguem as histórias verdadeiras (os mitos) das falsas, as que contam as aventuras e proezas nada edificantes do coiote; estas têm conteúdo profano. ‘O [Coiote] é trapaceiro, velhaco, embusteiro e tratante consumado’ (v. Trickster). As histórias falsas podem ser contadas em qualquer parte e a qualquer momento. Mas os mitos não podem ser indiferentemente narrados, nem perante as mulheres e crianças, ou os não-iniciados. A recitação é comparada a um poderoso sortilégio, porque provoca a presença real do herói /15.
III O QUE REVELAM OS MITOS
9 Narram não apenas a origem do mundo, dos animais, das plantas e do homem, mas também de ‘todos os acontecimentos primordiais em consequência dos quais o homem se converteu no que é hoje – um ser mortal, sexuado, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar para viver, e trabalhando de acordo com determinadas regras’ /16.
10 Algo aconteceu in illo tempore. Se esse algo não tivesse acontecido, o homem seria imortal.
11 ‘assim como o homem moderno se considera constituído pela história, o homem das sociedades arcaicas se proclama o resultado de um certo número de eventos míticos’ /16.
12 Mas o homem moderno não se sente obrigado a conhecer sua história, enquanto o homem da sociedade arcaica é obrigado não somente a conhecer a história mítica da tribo, como a reatualiza-la: ele não crê na irreversibilidade dos eventos da história. O acontecimento histórico não é reatualizado. Para o homem primitivo o que aconteceu ab origine pode ser repetido através do poder dos ritos.
IV O QUE SIGNIFICA CONHECER OS MITOS
13 A história narrada pelo mito é um conhecimento de ordem esotérica, acompanhado de poder mágico-religioso. Se não relatar a origem do remédio não adianta usa-lo.
14 ‘Ao viver os mitos sai-se do tempo profano, cronológico, ingressando num tempo sagrado, ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável’ /21. Deixa-se de existir no mundo de todos os dias a ‘penetra-se num mundo transfigurado, auroral, impregnado da presença dos entes sobrenaturais. Não se trata de uma comemoração dos eventos míticos mas de sua reiteração’ /22. Vai-se para o ‘tempo forte do mito: é o tempo prodigioso, sagrado’ /22.
PARTE II PRESTÍGIO MÁGICO DAS ORIGENS
B. - MITOS DE ORIGEM E MITOS COSMOGÔNICOS
15 Todo novo aparecimento de animal, planta ou instituição, implica a existência de um mundo /25. Os mitos de origem prolongam e completam o mito cosmogônico: eles contam como o mundo foi modificado, enriquecido ou empobrecido /26.
16 O guru recita o mito cosmogônico só duas vezes: quando o iniciado adquire plenos direitos sociais, e no serviço funerário.
17 O Mandala é uma imago mundi: ‘representa simultaneamente o cosmo em miniatura e o panteão. Sua construção equivale a uma recriação mágica do mundo. Por conseguinte, quando o feiticeiro Bhil desenha o mandol ao pé do leito de um doente, repete a cosmogonia’ /28. Convertido simbolicamente em contemporâneo da criação do mundo, o doente mergulha na plenitude primordial: deixa-se penetrar pelas forças gigantescas que, in illo tempore, tornaram possível a criação’ /29. O doente é projetado para fora do tempo profano e inserido na plenitude do tempo primordial: é conduzido para trás até a origem do mundo e assiste, assim, à cosmogonia /29. Há solidariedade entre o mito cosmogônico, o mito de origem da enfermidade e o do remédio /29.
18 Um Xamã não pode efetuar uma cerimônia de cura se ele mesmo não se submeteu a ela /29.
V REITERAÇÃO DA COSMOGONIA
19 Sendo o modelo exemplar de toda criação, o mito cosmogônico pode ajudar o doente a recomeçar sua vida. O retorno à origem oferece a esperança de renascimento /32.
20 Para as sociedades arcaicas a vida não pode ser reparada, mas somente recriada mediante um retorno às fontes /33.
21 O homem das sociedades arcaicas sente a unidade fundamental de todas as espécies de obras ou formas, biológicas, psicológicas ou históricas /34.
22 A cosmogonia constitui o modelo exemplar de toda situação criadora: tudo que o homem faz repete, de toda forma, o “feito” por excelência, o gesto arquetípico do deus criador, a criação do mundo /34
23 ‘por extensão, tudo o que é perfeito, ‘pleno’, harmonioso, fértil, em suma: tudo o que é ‘cosmicizado’, tudo o que se assemelha a um Cosmo, é sagrado /34.
24 Recapitulação visa introduzir ritualmente o recém nascido na realidade do mundo e da cultura /35.
VI O RETORNO À ORIGEM
25 O tempo da origem é considerado um tempo ‘forte’ porque foi receptáculo de uma nova criação.
26 Nos acontecimentos importantes p/ a tribo constrói-se uma casa cerimonial (marapu) /v. Templo/ e os narradores contam a história da criação de dos ancestrais. Os recitantes representam todos os membros do grupo, inclusive os mortos /36.
PARTE III MITOS E RITOS DE RENOVAÇÃO
C. - ENTRONIZAÇÃO E COSMOGONIA
27 Na ascensão de um Rei repete-se simbolicamente a cosmogonia. O rei ergue os braços: representa a Axis mundi; fica em pé sobre o trono, o umbigo da terra /v. Ônfalo/, o Centro do mundo; é aspergido: as Águas descem do Céu ao longo do axis para fertilizar a Terra. /42
28 O rei se torna responsável pela estabilidade, fecundidade e prosperidade do cosmo /43.
VII RENOVAR O MUNDO
29 O mundo deve ser anualmente renovado, e a renovação obedece um modelo: a cosmogonia ou mito de origem /44.
30 Nutrir-se não é simplesmente um ato fisiológico, mas igualmente um ato religioso: comem-se as criações dos entes sobrenaturais.
31 Yurok: o fortalecimento do mundo mediante reconstrução anual da cabana de vapor /45. A cabana representa o universo /47.
32 O sacerdote enquanto realiza os ritos não deve ser visto nem tocado, porque se torna temporariamente imortal /46.
VIII DIFERENÇAS E SIMILARIDADES
33 O ano é um Círculo ao redor do mundo /47.
34 Todo ano novo tem elemento essencial em comum com o 1º dia do mundo criado, do começou o ciclo das Estações /48.
35 Para os hebreus o enredo arcaico da renovação periódica do mundo foi progressivamente historicizado /49.
36 A intuição do ano como ciclo se acha na origem da ideia de um cosmo que se renova periodicamente. Também nos enredos míticos do ano novo há a ideia da ‘perfeição dos primórdios’, expressão de experiência religiosa mais profunda, nutrida pela recordação imaginária de um Paraíso perdido, beatitude que precedeu a atual condição humana /50 /v. Queda/.
37 Depois, veio a ideia de que para algo novo realmente ter início é preciso que os restos e ruínas do velho ciclo sejam completamente destruídos. A Escatologia é apenas prefiguração de uma [Cosmogonia] do futuro. Não se trata mais de regenerar o mundo, mas de destruí-lo para recriá-lo /51.
38 Necessário um retorno à origem literal, regresso do cosmo ao estado amorfo, caótico, seguido de nova cosmogonia. /52
39 Mobilidade da origem: a ideia da ‘perfeição dos primórdios’ foi assim projetada num futuro atemporal. A origem não está mais só num passado mítico, mas também num futuro fabuloso /52.
PARTE IV ESCATOLOGIA E COSMOGONIA
D. - O FIM DO MUNDO, NO PASSADO E NO FUTURO
40 Na teoria indiana o homem não tem papel na recriação periódica do mundo, não deseja essa recriação e quer fugir do ciclo cósmico. E os deuses não são verdadeiros criadores, são instrumentos pelos quais se opera o processo cósmico. /60
IX MILENARISMOS CRISTÃOS
41 Durante séculos encontramos muitas vezes a mesma ideia religiosa: este mundo, o da história, é injusto, abominável, demoníaco, felizmente ele está já em vias de decomposição, as catástrofes se iniciaram já /64.
42 A mitologia escatológica e milenarista reapareceu nos últimos tempos na Europa em dois movimentos políticos totalitários, radicalmente secularizados na aparência, o [Nazismo] e o Comunismo estão carregados de elementos escatológicos: anunciam o fim deste mundo e o início de uma nova era de abundância e beatitude /65. Marx retomou um dos grandes mitos escatológicos asiático-mediterrâneos: o papel redentor do justo (o proletariado), cujos sofrimentos modificam o status ontológico do mundo, levando ou reconduzindo a uma idade de ouro que caracteriza, conforme muitas tradições, o começo e o fim da história; atribuiu papel profético e função soteriológica ao proletariado; luta entre o bem o mal. /158 /v. [Soteriologia]/
43 ‘sob a terminologia pseudo-científica de que um e outro se servem, pode-se reconhecer facilmente uma fantasia cujos elementos lembram singularmente as elucubrações já em curso na Europa medieval. A batalha final e decisiva dos eleitos (sejam eles a raça ariana ou o proletariado) contra as hostes do mal (sejam eles os judeus ou a burguesia)’ /65.
X O FIM DO MUNDO NA ARTE MODERNA
44 Desde o início do século as artes plásticas bem como a literatura e a música passaram por transformações tão radicais que foi possível falar numa destruição da linguagem artística (...) um verdadeiro aniquilamento do universo artístico estabelecido. (...) tem-se a impressão de que o artista quer fazer tabula rasa de toda a história da pintura. Mais que destruição, uma regressão ao caos, a uma espécie de massa confusa primordial. (...) chegar a uma modalidade germinal da matéria, a fim de poder recomeçar a história da arte a partir do zero. /68
45 ‘São sobretudo os artistas que representam as verdadeiras forças criadoras de uma civilização ou de uma sociedade. Através de sua criação, os artistas antecipam o que deverá ocorrer – algumas vezes duas gerações mais tarde – em outros setores da vida social e cultural’ /69.
46 É significativo que a destruição das linguagens artísticas tenha coincidido com o aparecimento da psicanálise. (...) Eles compreenderam que um verdadeiro reinício não pode ter lugar senão após um verdadeiro fim. E, primeiros entre os modernos, os artistas puseram-se a destruir realmente o mundo deles, a fim de recriar um universo artístico no qual o homem possa simultaneamente existir, contemplar e sonhar /69.
PARTE V O TEMPO PODE SER DOMINADO
E. - A CERTEZA DE UM NOVO COMEÇO
47 Notar relações entre escatologia e cosmogonia. Mesmo nas escatologias o fato essencial não é o fim, mas um novo começo. ‘Para o homem das sociedades arcaicas o conhecimento da origem de cada coisa (animal, planta, objeto cósmico, etc.) confere uma espécie de domínio mágico sobre ela: sabe-se onde encontra-la e como fazê-la reaparecer no futuro’ /72. O mesmo vale para os mitos cosmogônicos: saber o que se passou no começo é saber o que haverá no futuro
48 Para a psicanálise ‘o verdadeiro primordial é o primordial humano, a primeira infância. A Criança vive num tempo mítico, paradisíaco. (...) Traduzindo isso em termos de pensamento arcaico, pode-se dizer que houve um ‘paraíso’ (para a psicanálise, o estado pré-natal ou o período que se estende até a ablactação) e uma ‘ruptura’, uma ‘catástrofe’ (o traumatismo infantil’ /73. Há a queda, o tempo paradisíaco termina é se converte ‘para cada indivíduo, em um ‘tempo vivido’’ /74. A técnica da psicanálise possibilita um retorno individual ao tempo da origem /74.
49 ‘Eis a razão porque o Inconsciente apresenta a estrutura de uma mitologia privada (...) Pode-se mesmo dizer que o único contato real do homem moderno com a sacralidade cósmica é efetuado pelo inconsciente, quer se trate de seus sonhos e de sua vida imaginária, quer das criações que surgem do inconsciente (poesia, jogos, espetáculos)’ /73.
50 De todas as ciências da vida, somente a psicanálise chega à ideia de que o começo de todo ser humano é beatífico e constitui uma espécie de paraíso. Todas as outras ciências ressaltam a precariedade do começo e a evolução. /73
XI TÉCNICAS TRADICIONAIS DE ‘VOLTAR ATRÁS’
51 O simbolismo dos rituais iniciatórios implica um regressus ad uterum /v. Útero/. A Iniciação do adolescente usa ritos que simbolizam a transformação do noviço em embrião, para dar-lhe segundo nascimento /75, uma renascença mística, espiritual, para acesso a um novo modo de existir (com maturidade sexual, a participação na cultura e na sacralidade) /76. Também se enterram doentes para que renasçam do seio da mãe-terra /77.
52 Certos mitos referem heróis que fizeram o regressus em carne e osso, e não só simbolicamente. O herói é tragado por um monstro marinho /v. Baleia, Jonas/ e emerge vitorioso do ventre do Monstro, ou faz travessia iniciatória de uma [Vagina dentata], ou a descida perigosa de uma greta que semelha a Boca ou útero da mãe-terra /76 /v. Boca do Inferno, Katabasis/.
53 Toda Noite simboliza o caos primordial e todo nascer de Sol representa réplica da cosmogonia. As trevas pré-natais ou da cabana iniciática simbolizam a noite que precedeu a criação /77.
54 Na china 2 técnicas de retorno à origem: Respiração embrionária e trabalho alquímico /v. Alquimia/. ‘Durante a fusão dos metais o alquimista taoísta procura operar em seu próprio corpo a união dos dois princípios cosmogônicos, céu e terra, para reintegrar a situação caótica primordial, que existia antes da criação’ (estado caótico). Os alentos foram confundidos na origem e formara um Ovo, o Grande-Um /78.
55 Não se trata aqui de reiterar a criação cósmica, mas de voltar ao caos que precedeu a cosmogonia /79.
XII CURAR-SE DA AÇÃO DO TEMPO
56 Índia, [Ioga] e Budismo são soteriologias. O objetivo não é saúde ou rejuvenescimento, mas a libertação, curar o homem do tormento da existência. Percorre-se o tempo ao inverso, contra a corrente, queimando os resíduos cármicos, para chegar à origem, àquele instante paradoxal onde o tempo não existia, o não-tempo, o eterno presente que precedeu a existência temporal, recuperar o estado não condicionado que precedeu a queda no tempo e na Roda das existências /80.
57 ‘para curar-se do tempo, é preciso voltar atrás e chegar-se ao ‘princípio do mundo’’ /81. Diferente do modelo da escatologia onde há abolição instantânea do mundo e sua recriação.
XIII RECUPERAR O PASSADO
58 Queimar as recordações não se trata de apaga-las instantaneamente, mas aboli-las ao revivê-las, rememorando: ‘graças a essa recordação que se chega a ‘queimar’ o passado, a dominá-lo, a impedir que ele intervenha no presente’ /82.
59 A Memória é considerada o conhecimento por excelência, quem pode recordar tem mais força mágico-religiosa do que quem só conhece a origem das coisas. O conhecimento ‘objetivo’ é inferior ao ‘subjetivo’ baseado na memória de existências anteriores /83.
PARTE VI MITOLOGIA, ONTOLOGIA, HISTÓRIA
F. - O ESSENCIAL PRECEDE A EXISTÊNCIA
60 Para o homem religioso a existência real, autêntica, começa quando ele recebe a comunicação da história primordial e aceita suas consequências /85 (m.c.: Batismo?).
XIV DEUS OTIOSUS
61 Muitas tribos primitivas creem num ente supremo que criou o mundo e o homem, mas depois os abandonou, e se retirou para o céu. Esse deus odioso vive isolado dos homens, indiferente às questões do mundo. Não tem culto, sacerdotes nem templos. Há uma ruptura nas comunicações entre céu e terra, o céu se afasta e a terra perde o status primordial paradisíaco: o homem perde a imortalidade e o poder de falar com animais, e passa a ter de trabalhar para viver. É o primeiro exemplo da Morte de deus de que fala Nietzsche /87-88. O Deus odioso é substituído por outros que estão mais próximos do homem e o ajudam. /90
62 Mas as tribos recorrem ao deus odioso excepcionalmente em situações de grande calamidade. Há uma ‘sobrevivência larvada ao nível do inconsciente, ou ao nível do símbolo’ /89. ,9 (nota: v. a propósito Olorum).
XV DIVINDADE ASSASSINADA
63 Em certas mitologias há deuses que foram mortos pelos ancestrais míticos. Essa morte violenta do deus é criadora: a substância da divindade assassinada sobrevive em algo que essa morte gera, e que é importante para a existência humana. De certa forma o deus sobrevive na criação decorrente de sua morte ou derivada de seu corpo morto (um alimento, um animal, uma planta, uma instituição). Um rito periódico reatualiza/repete o assassinato do deus. /91
64 Geralmente o deus assassinado não é cosmogônico, mas apareceu após a criação original. Esses deuses são os 1ºs que antecipam a história humana: sua existência é limitada no tempo e sua morte constitui a condição humana. /92
65 O assassinato de uma divindade ancestral pelos homens ancestrais marca o fim de uma época paradisíaca, e inaugura o tempo atual; os ancestrais se tornaram homens, isto é, sexuados e mortais. O deus morto sobrevive na "casa dos mortos" em que se transforma, isto é, no modo de ser da morte, que surgiu com sua morte. A morte do deus é um modo de continuar presente na vida e na morte dos homens. /96
66 O pecado mais grave é o esquecimento de um episódio qualquer do drama divino primordial. Os Sacrifícios humanos ou animais são rememoração solene do assassínio primordial, e o [Canibalismo] é uma forma de "comer" a divindade. /97
67 O sacrilégio de não lembrar é expiado mediante o lembrar com especial intensidade, e o sacrifício de sangue é um lembrete intenso /98.
68 formou-se uma relação entre deus e homens, um tipo de Comunhão: o homem se nutre do deus e ao morrer se une a ele no reino dos mortos. /98
XVI A ONTOLOGIA DÁ LUGAR À HISTÓRIA
69 para essas religiões o essencial não foi decidido durante a criação do mundo, mas num certo momento da época mítica (não no tempo cosmogônico mas noutro, posterior, o tempo mítico). assim o essencial não está preso à ontologia (como o mundo veio a existir) mas a uma história.
70 são os 1ºs mitos patéticos e trágicos. Daí por diante na maioria das culturas o deus criador será esquecido e, mesmo quando lembrado, raramente cultuado ou colocado em papel importante na vida religiosa (assim Urano, El, Dyaus dos hindus-vedas). A passividade e ociosidade dele é plasticamente representada por sua Castração: torna-se impotente e incapaz de intervir no mundo. Os "deuses novos', que substituem o criador castrado/afastado, não são criadores do mundo, mas gestores, mantenedores da ordem e da fertilidade, ou fecundadores, como Zeus. /99
71 as religiões 'novas' mostram interesse cada vez maior pelo que se passou após a criação da terra e do homem. /99
72 o tema da descida de uma deusa ou uma jovem divina aos Infernos, ou da morte violenta ou acidental do deus (Osíris, Átis, Adônis), gerou mais tarde as religiões dos mistérios, em cerimônias relacionadas com a Vegetação/fertilidade ou a Iniciação. /100
73 daí as mitologias são cada vez mais narrações das gestas dos Deuses, e em certo tempo uma elite começa a desinteressar-se da história divina e chega a não acreditar mais nos mitos, embora pretendendo acreditar nos deuses. /100
XVII O COMEÇO DA DESMITIFICACÃO
74 começou um processo consciente e caracterizado de desmitificação; alguns mitos perderam significação religiosa virando lenda ou conto infantil. Na grécia e índia tratou-se de um fenômeno cultural de sérias consequências: as mitologias não representavam mais para as elites o que haviam sido para o antepassados. As elites intelectuais não buscavam mais saber o que aconteceu aos deuses, mas numa situação primordial antecedente: um esforço para ir além da mitologia, identificar a matriz do Ser, busca da fonte, do princípio, a filosofia deixou o mito cosmogônico e foi atrás do problema ontológico. O 'regressus' não era mais pela via do ritual, mas pela do pensamento. /101.
75 esse fenômeno não aboliu o pensamento mítico. Nas cosmologias de Platão e Aristóteles o modo de pensar arcaico, o tema mitológico ainda persiste. é que aceitavam o essencial do pensamento mítico, que é a ideia do eterno retorno, a visão cíclica da vida cósmica e humana. Só com a descoberta da História, com o despertar da consciência histórica no judeu-cristianismo, e seu desenvolvimento em Hegel e sucessores, que o mito foi superado. mas o pensamento mítico sobreviveu, só que de modo camuflado, modificado, dentro da historiografia /102.
PARTE VII VII MITOLOGIA DA MEMÓRIA E DO ESQUECIMENTO
XVIII QUANDO UM YOGUE SE APAIXONA POR UMA RAINHA
76 O mito do salvador salvo. O motivo central de várias lendas é a Amnésia-cativeiro /v. Prisão/ causada por uma imersão na vida, e a anamnese produzida pelos sinais e palavras enigmáticas de um discípulo.
77 a literatura indiana usa imagens de amarração, acorrentamento, cativeiro, ou de esquecimento, ignorância, Sono, para significar a condição humana. /104.
78 os deuses caem do céu quando a memória lhes falta ou se confunde: caem e se tornam homens; os deuses que não esquecem são eternos, imutáveis /v. Queda/. /105
79 A situação do Self: enredado nas ilusões criadas por sua existência corporal, o self (âtman) sofre as consequências dessa ignorância até sua libertação (mukti), que é só uma tomada de consciência da sua liberdade eterna: o engajamento no mundo era só aparente. /106
80 o despertar é dilacerar o Véu de [Maya]. Buda = desperto, possui a onisciência absoluta. /107
XIX ESQUECIMENTO E MEMÓRIA NA GRÉCIA ANTIGA
81 Há continuidade entre as crenças populares e as especulações filosóficas. Mnemosine, personificação da memória, é mãe das Musas, e é onisciente: conhece tudo que aconteceu desde as origens. quando o poeta é possuído pelas musas sorve diretamente desse conhecimento. O passado assim revelado é mais do que o antecedente do presente, é sua fonte: a rememoração no só situa os eventos num quadro temporal, mas atinge as profundezas do ser, descobre a realidade primordial da qual proveio o cosmo, e que permite compreender sua totalidade; as realidades originais são fundamento do mundo. A inspiração do poeta é como a evocação de um morto desde o mundo infernal, ou uma descida do poeta ao Inferno /Katabasis/ para apreender o que quer conhecer. Mnemosine concede ao poeta um contato com outro mundo, a possibilidade de nele entrar e sair livremente. O passado surge como uma dimensão do além. /108
82 A fonte de Letes /O rio leto/ integra o reino da morte, os mortos são os que perderam a memória; quem conserva sua memória após o trespasse não está morto. A fim de tornar seu filho Etalide imortal Hermes lhe concede uma memória infalível. /109
83 Quando vem a doutrina da Transmigração, a mitologia da memória muda, a função do Letes é invertida: faz os mortos esquecerem suas encarnações anteriores, quando vão reencarnar. o esquecimento não simboliza mais o retorno à Morte, mas o retorno à vida. /109
XX MEMÓRIA PRIMORDIAL E MEMÓRIA HISTÓRICA
84 Letes é impotente face alguns privilegiados, os que são inspirados pelas musas (profetismo ao inverso) e recuperam a memória dos eventos primordiais (lembram as origens de tudo), e os que conseguem recordar suas existências anteriores (Pitágoras e Empédocles) (lembram a história pessoal). Quem supera o esquecimento supera a morte. /110
85 Lembrar a própria história fragmentada em inúmeras encarnações visa unificar os fragmentos numa só trama para descobrir o sentido do seu destino. /111
86 Para Platão aprender é rememorar: entre duas existências terrestres a alma contempla as Ideias, compartilha do conhecimento puro e perfeito, mas ao reencarnar bebe da fonte do Letes e esquece. O conhecimento fica latente no homem encarnado, e pode ser rememorado pelo esforço filosófico; os objetos físicos ajudam a alma a recolher-se dentro de si mesma e ‘voltando atrás’ reencontrar e recuperar o conhecimento. /111 (o mundo platônico das ideias se assemelha ao inconsciente coletivo de Jung). /112
87 Para platão o esquecimento não é parte da morte, mas da vida, voltar a vida faz esquecer, não as existências anteriores, mas as verdades transpessoais e eternas; a anamnese não recupera eventos, mas verdades. /112
88 Os mitos asseguram ao homem arcaico que tudo que ele fez ou fará já foi feito no princípio dos tempos. O mito é a súmula do conhecimento útil. Uma existência só é realmente humana se se inspira nesse reservatório de atos-modelo. Esquecer o conteúdo dessa memória coletiva é pecado, é regredir ao estado natural, acultural, da criança. Há uma analogia com a tese de platão: para o homem arcaico os mitos representam os modelos paradigmáticos, e não uma série de experiências pessoais. /112
XXI O SONO E A MORTE
89 porque [Hipnos] é irmão de [Tanatos], na Índia e na Grécia, como no gnosticismo, a ação de Despertar tem um significado soteriológico. Alguns dos motivos gnósticos mais populares envolvem queda, captura, abandono, nostalgia, entorpecimento, Sono ou Embriaguez (para indicar a existência terrestre, a condição da alma encarnada, que esqueceu sua origem e natureza sagradas, seu verdadeiro centro, seu ser eterno) e do despertar para indicar a anamnese, o reconhecimento daquela origem e natureza sagradas. Ou seja, fora a figura da embriaguez, a existência terrestre (isto é, a vida), recebeu todas as características que no passado eram imputadas à Morte /115.
90 Talvez por isso a vitória sobre o sono e a capacidade de vigília prolongada são tradicionais provas iniciatórias /116.
XXII GNOSE E FILOSOFIA INDIANA
91 A palavra chave na linguagem dos gnósticos é ‘estrangeiro’: embora esteja no mundo e se movimento nele, o gnóstico não pertence a este mundo, vem e é de outra parte. Enquanto o homem arcaico, ao aprender os mitos, assume as consequências que derivam daqueles eventos primordiais, o gnóstico aprende o mito para desvincular-se de seus resultados /118.
XXIII ANAMNESE E HISTORIOGRAFIA
92 Despertar da historiografia. Desejo de conhecer o passado total da humanidade. Leva à descoberta de uma solidariedade com os povos desaparecidos ou periféricos (identificação). A verdadeira anamnese historiográfica também desemboca num tempo primordial, em que os homens também estabeleceram os seus comportamentos culturais /122. Prestígio das origens; toda inovação era concebida ou apresentada como um retorno às origens, a origem tem um prestígio quase mágico /157. Paixão pela origem nobre, que sustenta mitos racistas como o arianismo. /158.
PARTE VIII VII GRANDEZA E DECADÊNCIA DOS MITOS
XXIV TORNAR O MUNDO ABERTO
93 no mundo arcaico a religião abre um mundo sobrehumano, dos valores transcendentes, revelados pelos entes divinos ou ancestrais: valores absolutos, paradigmas das atividades humanas; os mitos visam despertar e manter a consciência de um outro mundo, do além, mundo divino ou dos ancestrais /123. Dão a ideia de que alguma coisa existe realmente, valores absolutos, fixos, duradouros no fluxo universal, capazes de guiar o homem e dar significação à existência humana. Esse mundo sagrado, transumano e transmundano, dá certeza de que algo existe de maneira absoluta, e daí surgem as ideias de verdade, realidade e significação. /124.
94 A imitação dos gestos paradigmas não é mera repetição. O xamã ou bardo ou médico-feiticeiro usa a criatividade poética, vinculada a uma experiência extática e dela dependente.
95 O mito garante ao homem que o que ele faz já foi feito, e portanto pode ser feito. Basta repetir o ritual cosmogônico e o território desconhecido (=o caos) se transforma em cosmo. /125
96 O homem arcaico vive num mundo aberto, embora cifrado e misterioso. O mundo fala, para entender basta conhecer os mitos e os símbolos. O mundo se revela enquanto linguagem. Todo objeto cósmico tem sua história, é capaz de falar ao homem. Essa coparticipação torna o mundo familiar e transparente: através dos objetos do mundo veem-se os traços dos entes de outro mundo. O homem arcaico se comunica com o mundo porque usa a mesma linguagem, o símbolo; e sente que o mundo também o vê e ouve. Por isso, o homem arcaico sabe que é algo mais /126/127.
97 O homem arcaico aceitaram a tortura, o [Canibalismo], as orgias sexuais, a caça às cabeças, como magicamente justificadas pelos mitos, como parte integrante do seu modo de ser. Os mitos explicam ao homem sua condição de ser mortal e sexuado, condenado a matar e trabalhar para nutrir-se. A conduta violenta tem valor religioso e se funda em modelos transumanos. O mito não é garantia de bondade: sua função é revelar modelos e dar significação ao mundo e ao homem. /127
XXV HOMERO
98 Homero deixou de lado tudo que seria elemento noturno, ctoniano, funerário da religião grega, as ideias sobre sexualidade e fecundidade, morte e vida além-túmulo. /131
99 Mas as mitologias não homéricas e não clássicas eram exatamente as mais populares. Sobreviveram à racionalização filosófica e sobreviveram, cristianizadas, até nossos dias. /132
XXVI TEOGONIA E GENEALOGIA
100 Zeus se vingou de Prometeu porque este, chamado a mediar a partição da carne da 1ª vítima sacrificada, enganou os deuses para deixar para os homens a melhor parte. É uma transformação/deturpação de um ritual ancestral, de doar aos deuses os ossos e a cabeça da caça /132.
XXVII OS RACIONALISTAS E O MITO
101 [Xenófanes] (nasc. 565): ‘se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e pudessem, com suas mãos, pintar e produzir as obras que os homens produzem, os cavalos e pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, e os bois semelhantes a bois, e a eles atribuiriam os corpos que eles mesmos têm’.
XXVIII DOCUMENTOS ESCRITOS E TRADIÇÕES ORAIS
102 Os mitos gregos ‘clássicos’ já representavam o triunfo da obra literária sobre a crença religiosa. Nenhum mito grego chegou a nós com seu contexto cultual. Conhecemos deles os documentos literários e artísticos, mas não conhecemos a experiência religiosa vinculada ao mito.
103 As elites intelectuais descobriram na Grécia outras mitologias capazes de articular novas ideias religiosas, como as religiões dos mistérios, as confrarias órfico-pitagóricas, os mistérios greco-orientais, as soteriologias dos neopitagóricos, neoplatônicos e gnósticos, além dos cultos e mitologias solares. /138
104 O cristianismo não enfrentou resistência da mitologia clássica, mas das religiões dos mistérios e das soteriologias, e sobretudo nas religiões e mitologias viventes, populares, rurais. Até hoje o cristianismo rural da europa, especialmente meridional e do sudeste, tem uma dimensão cósmica. Mas sobre essas nada sabemos, porque não têm documentos escritos. Estão impregnadas, cristianizadas, em tradições populares rurais. ‘é provável que o folclore religioso europeu ainda conserve uma herança pré-histórica’ /139.
105 As criações populares e tradições orais só serão valorizadas muito mais tarde, no Romantismo alemão. /140.
PARTE IX VII SOBREVIVÊNCIA E CAMUFLAGEM DOS MITOS
106 Os símbolos, figuras e rituais de origem judaica e mediterrânea foram assimilados pelo cristianismo, que sofreu um processo de judaização e paganização nos seus primórdios. /142. O cristianismo sofreu influências múltiplas e contraditórias, do gnosticismo, do judaísmo e do paganismo. /147
107 A originalidade do cristianismo está em a encarnação do deus se dar no tempo histórico, e não no tempo cósmico, mítico, como nas outras religiões. /146
108 A teologia cristã se utiliza das categorias do pensamento mítico. Embora a vida e drama de jesus, centro da vida religiosa, se tenham dado na história, esse drama conduziu à salvação: repetir ritualmente esse drama e imitar o modelo conduz à salvação. Isso é pensamento mítico. /146 ‘A imitação de um modelo transumano, a repetição de um enredo exemplar e a ruptura do tempo profano mediante uma abertura que desemboca no Grande Tempo, constituem as notas essenciais do ‘comportamento mítico’, isto é, do homem das sociedades arcaicas, que encontra no mito a própria fonte de sua existência’ /147.
109 Do judaísmo os cristãos tiraram o método alegórico de interpretar as escrituras, e especialmente a historicização das festas e símbolos da religião cósmica: unir a história da pregação de jesus e da igreja nascente à história sagrada do povo de israel. /147 eles cristianizaram os símbolos, os ritos, os mitos asiânicos e mediterrâneos, relacionando-os à sua história sacra, inclusive a pregação dos apóstolos e mais tarde a história dos santos. Um certo número de símbolos cósmicos – água, árvore, videira, arado, machado, navio e carro – já havia sido assimilado pelo judaísmo, e os cristãos os incorporaram dando sentido sacramental ou eclesiológico. /148
XXIX CRISTIANISMO CÓSMICO
110 No sul e sudeste da europa as práticas religiosas das populações rurais apresentavam, ainda no fim do séc. xix, figuras, mitos e rituais da mais remota antiguidade e mesmo da pré-história /148.
111 A experiência religiosa das populações rurais era nutrida por um cristianismo cósmico, uma liturgia cósmica, onde a natureza não é o mundo do pecado, mas obra de deus, restabelecida em sua glória original depois da encarnação; cristo Pantocrator desce a terra, visita os camponeses, como faziam os deuses ancestrais. Há uma nostalgia do paraíso, da natureza santificada pela presença do deus, livre da guerra: um ideal das sociedades agrícolas, cansadas da guerra da exploração de senhores estrangeiros. Há uma revolta passiva contra a tragédia e injustiça da história, onde o mal não é uma decisão individual, mas uma estrutura transpessoal do mundo histórico /150.
112 A função escatológica dos Reis manteve-se na europa até o séc. xvii; mesmo a secularização da figura do rei não extinguiu a esperança coletiva de uma renovação universal efetuada por um herói exemplar, numa de suas novas formas: o reformador, o revolucionário, o mártir (em nome da liberdade dos povos), o chefe de partido. /152
113 O pensamento mítico pode ultrapassar e rejeitar algumas de suas expressões anteriores, tornadas obsoletas pela história, pode adaptar-se às novas condições sociais e modas culturais, mas não pode ser extirpado /152.
114 A ideia por trás das [Cruzadas]: dupla plenitude da consumação dos temos e da consumação do espaço humano, no sentido de reunião das noções em torno da cidade sagrada e mãe, Centro do mundo, [Jerusalém] /153.
XXX MITOS E MASS MEDIA
115 ‘os personagens dos comic strips apresentam a versão moderna dos heróis mitológicos ou folclóricos’ /159.
116 Culto do Automóvel sagrado. O salão anual do automóvel tem todas as características de uma manifestação religiosa profundamente ritualizada /160.
117 Os mitos da elite se cristalizam em torno da criação artística. Função redentora da dificuldade, principalmente como é encontrada na arte moderna. A elite se apaixona por obras que representam mundos fechados, universos herméticos onde não é possível penetrar senão por superação de enormes dificuldades, equiparáveis às provas iniciatórias das sociedades arcaicas. Tem-se um sentimento de iniciação, pertencimento a uma minoria secreta. Obras que não forem difíceis são ignoradas, assim artistas que não forem malditos /162.
118 A redução dos universos artísticos ao estado primordial de matéria prima é uma fase num processo mais complexo, como nas concepções cíclicas das sociedades arcaicas: o caos, a regressão de todas as formas à indistinção da matéria prima, é seguida por uma nova criação, uma cosmogonia /163.
119 A narrativa épica e o romance prolongam, noutro plano e com outros fins, a narrativa mitológica. Trata-se de contar uma história significativa, de relatar série de eventos dramáticos ocorridos num passado mais ou menos fabuloso. ‘a prosa narrativa, especialmente o romance, tomou, nas sociedades modernas, o lugar ocupado pela recitação dos mitos e dos contos nas sociedades tradicionais e populares’ /163.
120 A estrutura mítica dos romances aparece na sobrevivência literária dos grandes temas e dos personagens mitológicos (o tema iniciatório, o tema das provas do herói-redentor e seus combates contra monstros). /163.
121 Há também a dupla realidade dos personagens literários, que refletem a realidade histórica e psicológica do leitor, mas dispõe, ao mesmo tempo, do poder mágico de uma criação imaginária. /164.
122 Há também a saída do tempo, que a literatura produz, e é o que mais a aproxima do mito. O leitor sai do tempo histórico e pessoal e mergulha num tempo fabuloso, trans-histórico, porque é aparentemente histórico mas é condensado e dilatado, e dispõe de todas as liberdades dos mundos imaginários. /164
123 ‘É sempre a mesma luta contra o tempo, a mesma esperança de se libertar do peso do tempo morto, do tempo que destrói e mata’ /165.
XXXI OS MITOS E OS CONTOS DE FADAS
124 Jan de Vries.
125 Propp retomou e desenvolveu a hipótese ritualista de Santyves (que via nos Contos de fadas um texto feito para acompanhar um rito cultual). Propp vê nos contos populares a reminiscência dos ritos totêmicos de iniciação. A estrutura iniciatória dos contos é evidente, mas seu enredo iniciatório é imaginário, não está ligado a um certo contexto histórico cultural. Jamais encontraremos neles a reminiscência de um determinado estádio da cultura: os estilos culturais e os ciclos históricos estão ali misturados. Subsistem apenas as estruturas de um comportamento exemplar, que pode ter sido vivido em grande número de ciclos culturais e em muitos momentos históricos. /169
126 Bruxa velha, a [Baba jaga], protagonista dos contos eslavos.
127 Tende a situar o nascimento dos mitos na cultura/religião megalítica pré-indo-europeia, de onde vieram os dois motivos dominantes dos contos: a Viagem para o além e as núpcias /v. Casamento/ de tipo real. /170
128 A epopeia heroica, a [Saga], não pertencem à tradição popular, são formas poéticas criadas nos e para os meios aristocráticos, seu universo é um mundo ideal, situado numa idade de ouro, como o mundo dos deuses. Na saga o herói está num mundo governado por deuses e destino. A saga ladeia o mito. Às vezes é difícil dizer se a saga conta a vida heroicizada de um personagem histórico ou se é um mito secularizado. /171.
129 A saga é pessimista e o conto otimista. /172
130 O conto se afasta do mundo mítico. O personagem parece emancipado dos deuses, seus protetores e companheiros bastam para dar-lhe vitória, o mundo é simples e transparente, uma total ausência de problemática, ao contrário da vida real. Sugere que os contos surgiram num tempo em que o homem já se apartara dos deuses tradicionais, mas ainda não passou às religiões dos mistérios: quando a vida ainda não foi sentida como catástrofe. Esse tempo seria o mesmo de Homero. /171. Então o conto surge junto com a saga, mas esta fica sendo da aristocracia, quando esta descobre a existência como problema e tragédia, enquanto o conto cai ao nível do povo.
131 A distância entre saga e conto é menor nas culturas primitivas, onde, ao contrário da Grécia, da idade média europeia ou do oriente) não há o abismo entre a classe letrada e o povo. Nas sociedades arcaicas o mito de uma tribo é conto para a outra.
132 O conto dessacraliza, ou camufla, os motivos e personagens míticos, há degradação do sagrado. Mas a função ainda é a mesma /173. O ‘conto maravilhoso’ ainda apresenta a estrutura de uma [Aventura] infinitamente séria e responsável, pois tem enredo iniciatório, com provas iniciatórias (lutas contra monstro, obstáculos aparentemente insuperáveis, enigmas a serem solucionados, tarefas impossíveis), a descida ao inferno ou Ascensão ao céu, ou a morte e a ressurreição, e o casamento com a [Princesa]/Príncipe. Ou seja, refere-se a uma realidade terrivelmente séria, a iniciação, a passagem, através da Morte[ e Ressurreição simbólicas, da ignorância e da imaturidade para a idade espiritual do adulto. /174.
XXXII MEUS COMENTÁRIOS
133 Ideias principais:
134 A ideia de que o conhecimento da origem de algo dá poder mágico sobre esse algo: o poder de dominá-lo ou recriá-lo.
135 A ideia de que há um ciclo e que certos ritos são necessários para manter o ciclo em andamento, renovando periodicamente a cosmogonia. Nos ritos uma cabana pode representar o universo, o cosmos, e suas paredes o tempo.
136 A ideia de que um rei pode ser um canal necessário ou instrumento para realização do rito renovatório.
137 A diferença entre soteriologia e escatologia, que não entendi direito. Parece que na 1ª o ciclo sem fim pode ser rompido, pode-se emancipar do ciclo, libertar-se dele, ser salvo, o que implica em libertar-se da roda do sofrimento para chegar a alguma espécie de nirvana, um tempo fora do tempo. Na 2ª parece haver a ideia de um fim que é também uma volta ao tempo do não-tempo. Enfim, parece a mesma coisa!
138 A ideia de que a psicanálise vê na 1ª infância o paraíso individual, do qual o humano é expulso pela ablactação, caindo na roda do tempo. A retroação psicanalítica seria similar aos ritos iniciáticos de retorno ao princípio, à origem, para renascer sadio e espiritualmente superior.
139 A ideia budista de queimar os resíduos cármicos recordando as existências até o início, para dominar o passado impedindo que interfira no presente.
140 A ideia de que comunismo e fascismo são milenarismos (cultos que prometem um mundo melhor para os eleitos após algum tipo de Apocalipse).
141 A ideia generalizada de que o homem era imortal e assexuado e, por causa de algum evento do passado, caiu numa existência sexuada e mortal, condenado a matar e trabalhar para nutrir-se.
142 A ideia curiosíssima do deus esquecido, aposentado, que se retira depois de criar ou dar algo ao homem.
143 A ideia de que o mito fornece um modelo paradigmático de ações e instituições, de forma que dá ao homem a certeza de que pode fazer algo, porque já foi feito no passado mítico pelo herói ancestral.
PARTE X BIBLIOGRAFIA
145 E972m. Eliade, M. (1972). Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva.
ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
INI | ROL | IGC | DSÍ | FDL | NAR | RAO | IRE | GLO | MIT | MET | PHI | PSI | ART | HIS | ???